O bom cabrito não berra 4 (detalhe), Froiid. Foto: divulgação

A MAGIA BRASILEIRA DESTRUIU O FUTEBOL CIENTÍFICO

por Froiid

8 de novembro de 2024

O bom cabrito não berra 4 (detalhe), Froiid. Foto: divulgação

“Já combinou com os russos?” Essa pergunta, que se tornou um jargão no imaginário popular brasileiro, é atribuída ao lendário jogador de futebol Manoel Francisco dos Santos, o Garrincha. O episódio, que é visto como uma anedota, com várias versões, teria ocorrido durante a Copa do Mundo de 1958, em Gotemburgo, Suécia, nos bastidores do confronto entre o Brasil e a União Soviética (URSS). Na sua versão mais conhecida, durante uma reunião tática, o técnico Vicente Feola teria apresentado uma estratégia para derrotar a temida seleção, a ser futuramente chamada de “Máquina Vermelha”. Vale lembrar que a URSS era apontada como o grande fantasma da Copa por seu “futebol científico”. Feola propôs um esquema tático em que Nilton Santos fizesse um lançamento da esquerda para a direita, onde Garrincha iria driblar três jogadores soviéticos e, então, cruzar para Mazola, que, na área, cabecearia para o gol.

O drible da Vaca, Froiid. Foto: divulgação

 

Com sua costumeira sagacidade, Garrincha lançou um desafio a Feola: ‘Mas seu Feola, o senhor já combinou com os russos?’. A pergunta, que soa como irônica e jocosa, revela que no futebol, assim como na vida, nenhuma tática é capaz de dominar completamente o jogo. Este jogo, mais tarde no mesmo ano, em uma exibição  televisiva francesa, foi lembrado como o dia em que “A magia brasileira destruiu o futebol científico”, no vídeo apresentado foram exibidas imagens das ruas do que parece ser a cidade do Rio de Janeiro, repletas de oferendas e rituais, velas acesas e orações fervorosas dos torcedores que, na época, em sua maioria, acompanhavam as partidas através de transmissões por radiodifusão, tendo em vista que a TV havia chegado ao Brasil apenas oito anos antes.

Estes elementos das crenças e fé já haviam sido constatados pelo crítico alemão Anatol H. Rosenfeld, no livro “O Negro, Macumba e Futebol” (1956). Nele, o autor apresenta estudos socioantropológicos para o público alemão sobre sua vivência no Brasil, onde observa o papel da ginga, da festa, da fé e do misticismo e a função do candomblé no futebol praticado pelos negros brasileiros. Para Rosenfeld, o futebol praticado aqui reflete uma tensão entre a racionalidade importada e as práticas culturais locais, nas quais rituais de proteção espiritual permeiam o jogo em todos os seus aspectos.

Nesse sentido, a pergunta de Garrincha explode como uma “metáfora crítica” para a tentativa de submeter a cultura futebolística a uma lógica externa, ignorando seus atributos mais fantásticos, como a fé, a improvisação e a criatividade. Observo que o uso do termo “macumba” é historicamente pejorativo, relacionado às religiões de matrizes africanas no Brasil. No entanto, a análise de Rosenfeld em sua época parte para as reflexões como as práticas religiosas são fundamentais, não só no futebol, mas na forma em que o negro brasileiro reconstrói sua identidade. Ao tratar da relação entre o negro brasileiro, sua espiritualidade e o futebol, o autor aponta para uma dimensão do jogo que vai além das quatro linhas, ligando o místico ao social.

Brasil x URSS, Copa de 1958. Foto: frame de vídeo/reprodução YouTube

A frase “A magia brasileira destruiu o futebol científico” representa mais do que uma simples vitória esportiva. Ela subverte a ideia de que o futebol deve ser uma contribuição racional e técnica. A ciência do futebol, com treinamentos precisos e estratégias calculadas, é confrontada pela fé, pelos rituais, pela intuição e pela religiosidade, aspectos profundamente enraizados na cultura popular brasileira. Esse confronto entre o racional e o espiritual, entre o técnico e o improvisado, é o que confere ao futebol brasileiro seu caráter único.

José Miguel Wisnik e Eduardo Galeano abordam esse aspecto transcendente do futebol em suas obras. Galeano, em “Futebol ao Sol e à Sombra” (1995), descreve o esporte em momento anterior à sua pretensa fundação pelos ingleses, e ressalta seu “rito pagão”, onde o estádio é um templo e os jogadores são deuses ou heróis. Wisnik, por sua vez, em “Veneno remédio: o futebol e o Brasil” (2013), sugere que o futebol, com suas multidões e rituais, cria uma experiência quase mística, onde o tempo se suspende e o sagrado emerge no jogo. Essa sacralidade é visível nas preces feitas antes de entrar em campo, nos sinais da cruz, nas promessas aos santos e nas oferendas antes de partidas decisivas.

A religiosidade encontra no futebol sua expressão mais óbvia, onde a fé desempenha um papel fundamental tanto para jogadores, quanto para torcedores. A convicção em forças superiores, capazes de influenciar o resultado de uma partida, é profundamente enraizada na cultura futebolística brasileira. Reforçando a ideia de que o futebol é mais do que um jogo, é uma manifestação do sagrado.

No Brasil, a fé desempenha um papel vital, inclusive no futebol. O uso de amuletos, rezas e rituais antes dos jogos demonstra como o futebol transcende o esporte, tornando-se um espaço de interação com o sagrado. O confronto entre o “futebol científico” e a “magia” revela não apenas uma disputa entre diferentes visões de jogo, mas também questões raciais e culturais. Como Rosenfeld constata, a religiosidade negro brasileira encontra no futebol uma forma de resistência e expressão. O campo de jogo torna-se um palco de disputas não apenas esportivas, mas também culturais e simbólicas: entre o racional e o espiritual.

Essas reflexões também apareceriam na obra de Mário Filho, “O Negro no Futebol Brasileiro”, publicado originalmente em 1947. O autor mostra como o futebol no Brasil se tornou uma identidade e espaço de inclusão social e transformação nacional. Filho descreve como, no início do século XX, o futebol era um esporte elitista e racialmente excludente, mas que, com o tempo, se democratizou, tornando-se um reflexo da diversidade do povo brasileiro. O futebol passou a ser uma metáfora para a própria nação, onde o negro, antes marginalizado, encontrou reconhecimento e protagonismo. Filho também destaca como a ginga e o estilo de jogo dos negros revolucionaram o futebol brasileiro, transformando-o em um espetáculo que encanta multidões.

O bom cabrito não berra 4, Froiid. Foto: divulgação

No entanto, o reconhecimento do negro no futebol nem sempre se traduziu em reconhecimento social mais amplo. Com o tempo, os jogadores se tornaram estrelas publicitárias, ídolos que influenciam a moda e costumes. O futebol tornou-se um espaço onde questões de raça, classe e identidade se entrelaçam, refletindo as contradições da sociedade brasileira que são postas em disputa, embora tenha sido, em seu início, um esporte tradicionalmente branco.

O jornalista e escritor Lima Barreto em suas diversas crônicas, denunciava questões sociais relacionadas ao esporte. Vemos isso nos textos “Sobre o Football” (1918) e “Uma partida de football” (1919), onde, neste último, o autor compara o jogo a um “círculo romano”, comparando a elite carioca, que se reunia para celebrar “cultura e educação (…) nas arenas de pontapés na bola”, a imperadores, sacerdotisas e gladiadores.

Além de sua constante crítica às elites, Barreto via o futebol como um reflexo da segregação social que caracterizava o Brasil de sua época. Ele observava que a popularização do esporte nos clubes de elite servia como mais uma ferramenta de exclusão das classes sociais mais baixas, apoiada pelo governo que ajudava a perpetuar essa divisão. Barreto não apenas denunciava essa exclusão, mas também criticava a repressão a outras expressões culturais (como a capoeira) que eram criminalizadas enquanto o futebol era incentivado.

Em “Bendito Football” (1921), ele condenou a decisão do presidente Epitácio Pessoa de excluir jogadores negros de uma competição internacional. A popularização do futebol entre os grupos marginalizados só viria mais tarde e, neste ponto, o drible vinha a se tornar uma das maiores expressões do futebol brasileiro, surgindo como uma resposta política a esse contexto de exclusão racial e social.

Ainda sobre o drible, em um artigo recente o Prof. Dr. Renato Nogueira narra a história da introdução do driblar no futebol brasileiro, situando-o no início do XX, um período marcado pela forte discriminação racial contra jogadores negros. Nogueira destaca que a primeira partida de futebol no Brasil ocorreu em 1874, organizada como uma exibição para a Princesa Isabel, e que, em 1916, iniciou-se o processo de profissionalização do esporte, com a criação da Confederação Brasileira de Desportos (CBD), e a respectiva filiação à Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol) e à Fifa (Federação Internacional de Futebol).

Até 1918, a Federação Brasileira de Esportes proibia a inscrição de atletas negros, impondo severas restrições a esses jogadores. Entre elas estava a impossibilidade de tocar ou derrubar adversários brancos, sob o risco de punições e agressões, tanto por outros atletas quanto pelo poder público. Diante dessas limitações, o drible surgiu como uma estratégia inspirada no movimento do samba, que permitia aos jogadores negros evitar o contato físico e afirmar sua presença no jogo. Mais que uma técnica esportiva, o drible tornou-se um ato de insubordinação, desafiando as regras de um esporte que os excluía. Essa habilidade acabou por transformar o estilo de jogo brasileiro em algo único e inimitável, influenciando profundamente e também ressignificando o futebol no país até os dias atuais.

A intersecção entre futebol e questões raciais revela-se central para compreender a dinâmica de exclusão e resistência que caracterizou o desenvolvimento do esporte no Brasil. O drible, como um gesto nascido dessa necessidade de evitar toques, é não apenas uma marca da habilidade técnica dos jogadores negros, mas um símbolo de sua resiliência diante de um sistema que buscava restringir sua atuação. Essas disputas vão além da dimensão técnica do jogo, refletindo uma luta mais profunda por identidade e reconhecimento.

Brasil x URSS, Copa de 1958. Foto: frame de vídeo/reprodução YouTube

Deste modo, assim como o negro teve que conquistar seu espaço no futebol, os desafios contemporâneos envolvem a preservação da essência cultural e mística do esporte em um contexto cada vez mais globalizado e comercializado. O misticismo e a religiosidade sempre fizeram parte do futebol brasileiro, nos lembrando de que, no Brasil, o futebol nunca será apenas sobre técnica ou ciência, ele é, acima de tudo, um território de fé e cultura. No contexto em que 22% da população brasileira se identifica como evangélica, segundo dados do IBGE de 2023, as manifestações de espiritualidade são também espelhadas. Elas seguem apontando intensamente as comemorações e gestos de fé, presentes nas faixas, orações, gestos e declarações que seguem dentro e fora do campo, seja no futebol de várzea ou no profissional, e inclusive, nas peladas de rua.

Por fim, a mística da negritude no Brasil — país que abriga a segunda maior população negra fora da África —, permanece viva em várias cosmologias, onde a magia continua a desafiar e complementar a lógica científica. Conclui-se que a anedótica pergunta de Garrincha que cunha a expressão “combinou com os russos?” pode ser aplicada a uma variedade de contextos contemporâneos, desde a política internacional e a geopolítica até a economia ou em uma conversa com amigos em uma mesa de bar. Tal como no histórico confronto contra os soviéticos, a imprevisibilidade e o drible protagonizado pelo negro brasileiro tornam-se uma estratégia de existência, uma forma de resistência às imposições externas, sem a necessidade de “combinar com os russos”.

 

Referências:

BARRETO, Lima. “Bendito Football”. Revista Careta, 1921.

____. Sobre o Football. In: Vida Urbana,1918. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&coobra=2171 Acesso: set. 2024.

FILHO, Mário. O Negro no Futebol Brasileiro. Rio de Janeiro: Mauad, 1947.

GALEANO, Eduardo. Futebol ao Sol e à Sombra. Porto Alegre: L&PM, 1995.

NOGUEIRA, Renato. “O Conceito de Drible e o Drible do Conceito: Analogias entre a História do Negro no Futebol Brasileiro e do Epistemicídio na Filosofia”. Revista Z Cultural, 2020. Disponível em: https://revistazcultural.pacc.ufrj.br/o-conceito-de-drible-e-o-drible-do-conceito-analogias-entre-a-historia-do-negro-no-futebol-brasileiro-e-do-epistemicidio-na-filosofia/. Acesso em: ago. 2024.

ROSENFELD,  Anatol H. O Negro, Macumba e Futebol. São Paulo: Perspectiva, 2007.

WISNIK,  José Miguel. Veneno Remédio: O Futebol e o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

 

A produção deste artigo é apoiada pelo Instituto Ibirapitanga.