Mapa da Generalidade da Catalunha com a indicação dos portos de cidades litorâneas catalãs participantes do tráfico negreiro (em preto) e os respectivos nomes de traficantes negreiros influentes nesta mesma sociedade (em amarelo). Foto: Televisió de Catalunya, 2023/reprodução

POEMAS BATEDORES DE CARTEIRA: NOTAS DE BOLSO SOBRE BARCELONA

por Fercho Marquéz-Elul

9 de janeiro de 2024

Mapa da Generalidade da Catalunha com a indicação dos portos de cidades litorâneas catalãs participantes do tráfico negreiro (em preto) e os respectivos nomes de traficantes negreiros influentes nesta mesma sociedade (em amarelo). Foto: Televisió de Catalunya, 2023/reprodução

I

 

Poemes batedores de carteira é um projeto de 157 escritos de caráter fragmentário, transitando desde poesia em prosa, de versificação livre, passando por poesia visual e caligramas até pequenas notas diárias. A partir da experiência perante obras, situações coletadas em escrita durante minha estadia na cidade Barcelona, um poema por dia de permanência ali era produzido. A grande maioria dos escritos foi feita em português, cerca de uma dezena em catalão e um poema visual em hebraico; por sua vez, escritos intitulados sob a nomeação Pulverizações foram traduzidos para o catalão em conjunto com Jordà Saumell-Serra.

Tais poemas fizeram parte do estágio doutoral sanduíche, intitulado Art i paraula: desplaçament, llengua i entremitjos [Arte e palavra: deslocamentos, língua e entremeios], coorientado pelo Prof. Dr. Jaume Fortuny-Agramunt na Universitat de Barcelona, Espanha, entre novembro de 2022 e abril de 2023 e compõem o trabalho Escurabutxaques: des del cap de la tardor de 2022 fins a l’inici de la primavera de 2023. Barcelona[1] estabelecido durante as investigações sobre escritura experimental espanhola e catalã naquela cidade.

Ali, entre as delícias dos desarranjos linguísticos, as amarguras da adaptação à vida europeia e a experiência massificada causada pelas hordas e mais hordas de turismo consumista, bem como a desconfiança surgida a partir de constantes afirmações a respeito da criminalidade na cidade de Barcelona, especialmente da atuação dos carteristas – batedores de carteira –, passo a escrever em uma cidade eufórica que está economicamente sempre em crescimento. Enquanto isso, envergonhávamo-nos, no Brasil, com a tentativa de golpe de estado, com os conspiracionismos baratos em um desalento ambiental e social, que claramente para mim, eram oposições tais quais assentos desnivelados de uma mesma gangorra. Falavam-se muito que, supostamente, a criminalidade era causada pelos jovens marroquinos, imigrantes desacompanhados, mas pouco se via a Catalunha[2], bem como a Espanha falar em seu papel interminável de colonialismo no norte da África.

No documentário Negrers: la Catalunya esclavista [Negreiros: a Catalunya escravagista], veiculado pela Televisió de Catalunya, em 2023, Weleló Zamora – artista e professor catalão – interroga pensadores a respeito do papel da Catalunha na escravidão de pessoas da África às Américas. O comércio escravagista poderia ter acabado em 1807, quando a Grã-Bretanha proíbe finalmente o tráfico de escravos, ou em 1820, quando a Espanha também o faz; contudo, os negreiros catalães – aqueles que administravam esse mesmo tráfico – “continuaram a comprar e a vender escravos de maneira ilegal por mais outros cinquenta longos anos” (Negrers…, 2023)[3]. Para compreender melhor a grandeza dos números, em apenas cinquenta anos de comércio já ilegal, mais de meio milhão de pessoas foram levadas escravizadas pelos negreiros, cifra essa superior as mais de quatrocentos mil de pessoas que chegaram, ao largo de toda a história, aos Estados Unidos para o trabalho forçado, as violências e a desumanização. Martín Rodrigo, professor de História Contemporânea na Universitat Pompeu Fabra (UPF), aprofunda esses dados:

Se olharmos o tráfico ilegal de escravos, que são os últimos cinquenta anos, falamos em 1.400 barcos. Multiplique isso pelo número de capitães, pelo número de pilotos, pelo número de marinheiros, de contramestres… Multipliquemos e multipliquemos e veremos que o número de pessoas que se envolveram com aquilo era muito alto. E, de fato, alcançaram quase 600.000 africanos nesses 50 anos. Ou seja, era ilegal, fazia-se às escondidas, mas era uma atividade muito importante (Rodrigo In Negrers…, 2023).[4]

E nesse contexto de hipocrisia colonial, nomeei o que fazia de poemas batedores de carteira, como uma forma simbólica e sem eficácia de propor certas retomadas importantes para mim: a compreensão profunda transposta em palavras dessa experiência única, já que eu era, de uma certa forma, o marroquino no meu país e, portanto, assim deveria pegar de assalto aquela sociedade, sua língua, sua cultura e apropriar-me dela através do paradoxal gesto entre impotência e ação, entre civilidade e transgressão que  a linguagem da escritura poderia proporcionar. Desconfiar das linguagens que me rodeavam: da língua, das artes visuais, da arquitetura, das festas populares – todas intermediadas pela espetacularização –, e endereçar um olhar mais crítico sobre essas produções artísticas que levavam a mim e imensas quantidades de pessoas a visitar ou morar na cidade de Barcelona, alimentando seu softpower cultural.

Para quem – como eu – passeou tantas vezes pela região do Eixample em Barcelona, essa localidade de peregrinação dos amantes do modernismo catalão em Barcelona, Michael Zeuske, professor emérito da Universidade de Colônia e especialista em escravidão destaca: “se passam pelas Ramblas sempre pensem que todas as casas e edifícios lindos ou ricos e bem construídos, de pessoas ricas na história, foi tudo construído e pago sobre os ombros dos escravizados”. Para investigar a ligação dos escravagistas catalães – conhecidos à época, como indianos – com o desenvolvimento social, tecnológico, cultural e artístico através da filantropia, patrocínio e mecenato no século XIX, na Catalunha, Weleló Zamora vai juntamente com Taté Cabré, jornalista e escritora, ao cemitério de Arenys del Mar, no litoral catalão, compreender de que modo as benesses do lucro escravagista se infiltravam na sociedade. Segundo Cabré,

Os indianos criam uma nova classe social e passam a ostentá-la. Têm de demonstrar ao mundo que vinham do futuro, que criaram fortunas e quando chegam à Barcelona como capital da Catalunha […], o que fazem é comprar um camarote no Liceu de Barcelona e fazer um grande panteão no cemitério. E, por isso, se nos fixemos nos grandes panteões desse cemitério, veremos que todos têm alguma reminiscência de relação com o ultramar. […] Não se pode dizer que a Catalunha como sociedade seria a mesma se não tivesse havido esta nova classe social, que serão os indianos. […] Ou seja, os indianos aportam um capital que cria novas infraestruturas elétricas, estradas, levam água canalizada às cidades, são a base do Modernismo, não haveria a Catalunha atual com a entendemos hoje sem toda essa herança. Mas, é que naquela época, toda a sociedade era escravista, e até os padres possuíam escravos (Cabré In Negrers…, 2023). [5]

Entendi rapidamente que, na Catalunha, o que os imigrantes norte-africanos sofriam, poderia ter correspondência com que acontecia no Brasil e dedicando a eles, aos imigrantes, às pessoas em deslocamento ou aos vulneráveis ao crime, produzi com a linguagem que, muitas vezes lhes é tirada, poemas que, de que alguma maneira, pudessem pegar de susto a europeidade, torcer sua língua, macular seus feitos históricos e culturais, dinamitá-los e pulverizá-los na cidade prestes a explodir. Alterar a altura do assento da gangorra e indicar quem tem sido os verdadeiros batedores de carteiras por todos esses séculos…

 

II

 

Fercho Marquéz-Elul, Polvoritz a  c   i    o     n       s, 2023. Foto: acervo do artista

 

Em um país dentro de um outro país, o processo da escritura me era solicitado na tentativa de tradução de experiências que se mostravam pungentemente como primeiras novidades. Apenas minha língua era o que possuía e levava comigo por onde quer que eu fosse quando me deslocava pela cidade, já que era algo que não pesava ou fazia barulho. Esse silenciamento de minha língua materna proporcionado pela viagem, foi logo desde de início considerado, ao me perceber em um diálogo calado comigo mesmo. Em Vocativo, poema de nº 37, expresso: “A travessia do oceano/ um travessão que se cala”. Parecia-me necessário que uma outra língua nascesse naquele contexto, em que “Falar uma língua/ [fosse] comer a fome da língua” anterior que então se silenciava. Em Somniloquium, poema escurabutxaca de nº 15, o sujeito que

Começa a falar sua língua mais própria
não sabe que a fala
porque exatamente neste momento
sonha dentro do sonho
uma língua capaz de fabular
pregada no epidídimo fantasmático
cerrada na arcada de um rosto sem boca.
O sonhador fala um rosto sem boca
e sua língua é capaz de migrar
do campo sonolento à empostação em vigília.
Às palavras o corpo do sono brota
jorra para a vigilância uma língua contorcida
sonhando
o nascedouro é comunicado.
O sonhador é um vivente que expele
uma língua cuja camada dá couraça ao sono
descamam as palavras
sua estrutura se descasca
murcham
secam molhadas
ao mesmo tempo que dá ao nascimento
a pele por sua conta e risco.

 

Uma língua que descansa na boca e que se dobra toda para que o sujeito possa percorrer a cidade como um caminho para a experiência. Um processo que vai, à medida que a estadia se prolonga no tempo, se tornando mais detectável na própria situação degustativa, como em Língua apre(e)ndida, de nº 85: “Aquela sensação de aniquilamento/ quando se aproxima de uma nova língua a ser aprendida/ e na linha iluminada do horizonte do entardecer/ ela te devora.” E, a partir disso, um perigo se forma em uma Europa estranhamente segura, contado no poema de nº 25 A língua e o anjo

Na virada da madrugada em manhã
batalho até o fim da aurora
com o anjo da língua catalã
entre quedas de braços e línguas que se enrolam em manuais
a discussão
— sonhar na língua é o que dizem
para a penetração total do veneno da linguagem
em via aos efeitos de tudo ser lustrado
com o nácar do cotidiano.
O antídoto
— línguas bifurcam o desuso
o esquecimento em um dente de leite.

 

A cidade é essa infraestrutura que dá suporte à minha experiência de escrita capturadora de tudo que pudesse guardar do que via e Barcelona, essa Localidade, poema de nº 47, é “O lugar/ — a língua própria das faltas/ a fábula raseira do chão rouco/ o hálito de cenezdo/ um escarro engolido/ o gargalo que engasga e tosse”. Faz-me aceitar, em um jogo com a urbe, que para aprender sua língua catalã, precisaria fazer minha língua nativa apodrecer. Quase no final da obra, no poema de nº 134, Transcriações das agonias de morte no leito de morte, o resultado disso é indicado pelo estágio avançado de decomposição: “minha língua putrefeita fala a morte sem conjugação de futuro”, cujo mal se espalha pelo organismo: “meu corpo em língua de morte” e o que fala parece ser o próprio conteúdo desse resultado: “Voz inaudibiliza/ língua incompreensível/ — a própria língua da morte”.

A escrita diária será essa instância em que se experimenta com a língua uma língua catalã, mas que se expressa em prosa poética em língua portuguesa, no silêncio, usando-se de seu estágio mais podre, quando as orações se rompem, quando o discurso se fragmenta em andares de frases que se equilibram no fazer. No fundo, tal escrita é compreendida em um jogo de transposições que só a complexa teia do traduzir – esse movimento de contrabando de levar de um lado para o outro – se faz presente no que se indica como a instância do escrever. Em O tradutor, único escrito em prosa disponível, de nº 140, afirmo que “Usurpando o papel do carteiro, o tradutor toma para si o transporte de seus conteúdos, violando um segredo ao comunicá-lo durante seu próprio movimento: os direitos de privacidade que uma língua acorda com seus falantes.”

A escrita diária possui a potência de ser a mais delatora dessa privacidade que oculta os recursos quando os fenômenos são acordados em linguagem. Em Diário de um ladrão, escrito por Jean Génet a respeito de suas vivências fora da lei em Barcelona, nos anos 30, escrita diária e crime são conjugados nessa situação de tradução: furtar, contrabandear, limpar os bolsos das coisas privadas guardadas e expressá-las ao outro:

Neste diário não quero dissimular as outras razões que fizeram de mim um ladrão, a mais simples sendo a necessidade de comer; todavia, em minha escolha jamais entraram a revolta, a amargura, a raiva ou qualquer sentimento desse tipo. Com um cuidado maníaco, “um cuidado ciumento”, preparei a minha aventura como se arruma uma cama, um quarto para o amor: eu tive tesão pelo crime” (Génet, 2015, p. 15).

Na escrita diária de Génet (2015, p. 57-58), ele só poderá defender-se pelo que é agora: “Por isso esclareço que ele deve informar sobre quem sou hoje quando o escrevo. […] Saiba-se, pois, que os fatos foram o que eu descrevo, mas a interpretação que deles extraio é o que eu sou – agora.” E o estatuto da escrita poética dar-se-á nessa atualidade que se presentifica em uma constante situação de movimento. Como se a restrição de escrita – por pensar as contraintes escritas do grupo francês Oulipo – fosse a estabelecida sob o jugo do estar-se em deslocamento: pelos meios de transporte, pelas ruas das cidades, retirando importantes sentidos e significados sobre esse agora da urbanidade a partir dos grupos de jovens marroquinos que são forçados pela eterna colonização europeia a migrarem desacompanhados para a Espanha e ali serem postos em uma interminável situação de margem, de fronteira e, portanto, por isso, sofrer as acusações de serem os produtores de todos os problemas criminais de um país que recalcou no além-mar sua própria barbárie.

O medo e a emoção que experimento sempre que atravesso uma fronteira suscitavam ao meio dia, sob um céu de chumbo, a primeira magia. […] A passagem das fronteiras e essa emoção que ela me causa iriam me permitir apreender diretamente a essência da nação em que eu estava entrando. Eu estava penetrando menos num país que no interior de uma imagem. Naturalmente eu desejava possui-la, mas também agindo sobre ela (Génet, 2015, p. 40-41).

 

III

Robert Bresson, Pickpocket [Michel treinando movimentos para bater carteiras], 1959. Foto: reprodução

É a partir dessa situação pessoal de margem – mesmo com visto de permanência e provisões financeiras do meu país de origem, mas também por causa de minha situação de imigrante temporário – que articulo em Escurabutxaques, menos uma direta inscrição sobre o baixo clero da criminalidade barcelonesa, mas toda a potência da transgressão e contravenções criminais que os acordos possibilitados pela ficção são capazes de articular. E por toda a obra, os elementos portáveis ao corpo ou têxteis são nominados: mortalhas, livros, bolsos, defunctações têxteis, velcrais, equipamentos de proteção individual, pelanca, cortinas. Especialmente o bolso é o elemento têxtil de mais importância em Escurabutxaques. A possibilidade ameaçadora de uma língua inutilizada se dobrar e se tornar um bolso, os bolsos das vítimas dos batedores de carteira, os bolsos dos próprios punguistas com todos os objetos contrabandeados, contravindos, a escrita como um bolso que guarda as experiências.

No poema Bolsos de nº 24, há a compreensão topológica dos objetos guardados no bolso e das imagens armazenadas dessa relação na mente.

As coisas sempre guardadas de ponta-cabeça
nos bolsos reviradas
chacoalhadas
como um louco molho de chaves
invertidas
seguem a anatomia
de um mundo avessado para dentro.
As coisas mais amadas se põem
na basculância de um bojo
à beira do dejeto atravessado
do refugo estocado.
Nossas mãos de ponta-cabeça
pensam melhor quando estão cegas
com as unhas aparadas
com as digitais intactas.
— singela questão de tato —
Mas os olhos impõem às coisas antes invertidas
em um gesto de ornitorrinco
que se virem levantadas perante o olhar.

 

Em Órgão em anexo, de nº 92, o bolso passa a compor a própria estrutura humana, ao mesmo tempo que se torna protuberante – na forma de bolsa – para fora do corpo, em um meio caminho entre anexo e apêndice:

A bolsa
um desgarrado bolso de pele
secção e estirpe
pêlo anexo transformado
órgão extraído
— um prêmio que oculta

 

E finalmente no fragmento nº 62, A bolsa se abriu/ expondo-se na esquina, o antigo bolso, então dependente, agora como bolsa, parece ter vida própria e em um rápido movimento, como que eletrificado, pode ser o próprio sujeito a praticar os crimes, à revelia do conhecimento de quem o porta…

no cair da alça do ombro
o rapto de um livro

 

O bolso, por sua vez, sofre aparições por outros poemas e faz constituir mais que um objeto, o próprio procedimento da escritura: guardar as experiências se faz necessário para que se possa oferecer qualquer compreensão disso somente depois. No primeiro poema, Entló, que abriu esse longo processo poético a cada dia passado em Barcelona,

Dobras de pisos e direção
em todo entender há
uma dobra guardada
recôndita
rugosa sob o tecido.
Na explicação
o engolir dos sentidos recuados
a digestão presumida
o pacto denotativo
mesa posta esperando apodrecer
o brilho da poeira do sentido
a direção roubada ao ser dobrada
e guardada levemente no bolso.
Pela mão autoritária
releva seu peso
rua calha em carreira
[eu] passeio e travesso
avenida despraça.
Depois a cifra
sangue na escada
subida sempre adiada
o sementário repleto
a extração hemorrágica.
O lado esquerdo do corpo
mais forte e soberano
músculos esquerdistas
explorados por toda uma vida
de desejo atendido.
Bolso esquerdo da calça
esgarçado o seu fundo
por tantas coisas ali pousadas
impacientes de permanência
não digeridas pela volição maníaca.
Do rapto interdito
a vontade cega
a capacidade de ver
se repete e se frustra
em cada tátil captura.

No poema nº 33, Hodierno, “O poema me proibiu baixar na estação Hodierna/ tornei-me um poço guardado num bolso”; no poema de nº 43, Pulverizações VI (Pulveria acuminata sp), essa mesma parte da roupa reaparece na “Contravenção que não se cabe no bolso/ prestidigitação danando a ordem/ o jardim arrasado de poagens-acuminadas.” No de nº 94, Tratos de plantas invernais no início de primavera, o bolso é capaz de envelopar a existência ficcional de uma planta em extinção durante o trato cotidiano de um jardim: “Num canteiro/ bolsos-de-nostalgia bem fertilizadas/ no cercado/ cuidadas longe dos caracóis-de-carícias/ que quase as devoraram/ por completo no inverno passado.”

No poema de nº 96, Entrevistando três pronomes catalães: En, Hi e Ho[6], inexistentes em língua portuguesa, quando perguntando pelo entrevistador “sobre o que você fala/ a que assunto você se refere?”, o pronome Ho diz enigmaticamente ser propriamente um bolso: “— Olha, veja bem/ isso é um pouco complicado/ sou tudo isso/ mas não aquilo/ eu me basto, na verdade/ mas sou um bolso que a tudo guarda/ apareço depois que a ação causada encontra seu rosto.” E na continuidade do enigma, o bolso de nº 127, Levanta-mortos (Fortunetelling), é visto vaticinando: “O levanta-mortos/ quando os véus drapeiam grávidos/ um corpo ancorado e náufrago/ as aves raras de voo podre/ e as fortunas contadas nos ocres/ fortune tellers/ nos bolsos de um ovo/ são chocadas as previsões/ de um destino goro”. E numa contração paradoxal, a bolsa, em outra parte das Transcriações das agonias de morte no leito de morte, é capaz de ser a morte e o tempo, simultaneamente:

Sou eu quem antes de mais nada e ninguém enterra a mim mesmo
sou o meu próprio coveiro
naquilo que eu sou seu próprio caixão pelo qual é responsável
sou uma bolsa de cal que ensina a pá-de-cova
que me cavam a morte
e minha caução

 

 

IV

 

Fercho Marquéz-Elul, Localidade: a cidade prestes a explodir, 2022. Foto: acervo do artista

A escritura de Escurabutxaques articula o procedimento de relação com a cidade intermediada pela apreensão imediata das experiências, ideias e situações no bloco de notas do celular. Esse modo de produção se distancia do que costumava seguir, quando uma ideia ou um pensamento ao me advirem, eram deixados escapar e a partir do que, posteriormente, eu pudesse lembrar-me, subsidiaria a elaboração da obra. Muitas das vezes era nos transportes públicos, principalmente o metrô barcelonês, em que eu escrevia e transpunha os conteúdos dessa escritura para o armazenamento do celular, para depois serem trabalhados em documento de edição de texto, impressos e novamente retrabalhados. Sobre o trabalho sendo feito no trajeto, o escrito de nº 37, Escansor se faz rapidamente de comentador voraz das consequências da escritura que somente é feita no momento do próprio deslocamento:

escrevendo poemas no metrô dá nisso
ao escandir um verso livre
lá se vão duas estações
paradoxo procedimental de inútil poesia contábil
tal qual esfregar
escamas de peixe morto
a contrapelo

 

É na própria situação real de deslocação corporal cuja percepção da cidade[7] segue outra lógica – não a lógica reticular do urbanismo modernista, mas a rede subterrânea de transporte cujos tempos ancorados rastejam pelos bolsões de túneis que se espalham ocultos sob os olhos da cidade. Vem-me à mente o trabalho de escrita poética de Jacques Jouet restringida aos momentos entre uma estação e outra de metrô, em que prescreve o procedimento de escrita como uma instrução:

Escrevo, de vez em quando, poemas de metrô. Este poema é um.
[…]
Um poema de metrô tem tantos versos quanto seu trajeto tem de estações menos uma.
O primeiro verso é composto em sua mente entre as duas primeiras estações de seu trajeto (contando a estação inicial).
É transcrito no papel quando o trem para na estação dois.
O segundo verso é composto em sua mente entre as estações dois e três de seu trajeto.
É transcrito no papel quando o trem para na estação três. E assim por diante (Jouet, 2000, p. 7).[8]

Produção mais que feita apenas na realidade, é decidida propriamente pelas necessidades de seu contexto. No prefácio A bolsa de Le Guin, Juliana Fausto antecipa – a partir de A teoria da bolsa da ficção de Ursula K. Le Guin – que a autora estadunidense oferece à reflexão sobre qual escolha tomar entre o caminho do herói e o caminho da vida, entre “as coisas de matar ou as coisas de pôr coisas dentro.” (In Le Guin, 2021, p. 15).

Ao falar, através da poética que se passa pelo bolso, é também rearticular toda a estruturação teleológica da literatura que se baseia no trânsito violento do herói. Sua teoria da bolsa da ficção abandona esse mito persistente para focalizar as histórias da vida como elemento principal, que, segundo Fausto (In Le Guin, 2021, p. 7), “em jogo, portanto, não está simplesmente o conteúdo, mas o método. Sua literatura bolseira não adere ao paradigma da História como conquista e teleologia, mas à história em tom menor.” Para Ursula K. Le Guin (2021, p. 19), é rotineiro ouvir falar “tudo sobre paus, lanças e espadas, sobre as coisas para esmagar e espetar e bater, as longas coisas duras, mas ainda não ouvimos nada sobre a coisa em que se põem coisas dentro, sobre o recipiente para a coisa recebida”, e complementa:

Diria que a forma natural, apropriada e adequada do romance pode ser aquela de uma sacola, de uma bolsa. Um livro guarda palavras. Palavras guardam coisas. Carregam sentidos. Um romance é um patuá guardando coisas numa relação particular e poderosa umas com as outras e conosco (Le Guin, 2021, p. 22).

Romance, relato, fragmento ou poema bolseiros: aquilo que se consegue levar quando toda a vida em um contexto de deslocamento ou de imigração será traduzida por seu peso – o peso de suas escolhas e também de suas faltas, o peso de sua bagagem – dentro de um bolso, nessa estrutura topológica na qual se consegue armazenar tanta coisa, elementar para a trapaça poética, portadora de ocultações, quando transportar algo sempre põe em dialética peso e salto, guardar e perder, tornar especial um objeto ou fazê-lo sumir ao embaralhá-lo para longe dos olhos.

 

A produção deste artigo é apoiada pelo Instituto Ibirapitanga.

 

Referências:

GÉNET, Jean. Diário de um ladrão. Tradução: Jacqueline Laurence e Roberto Lacerda. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.

JOUET, Jacques. Poèmes de métro. Paris: P.O.L, 2000.

LE GUIN, Ursula K. A teoria da bolsa da ficção. Tradução: Luciana Chieregati e Vivian Chieregati Costa. São Paulo: n-1, 2021.

MARQUÉZ-ELUL, Fercho. Escurabutxaques: des del cap de la tardor de 2022 fins a l’inici de la primavera de 2023. Barcelona. Tradução ao catalão: Fercho Marquéz-Elul & Jordà Saumell-Serra. Porto Alegre: Editora Huracay, 2023.

MARQUÉZ-ELUL, Fercho. Pulverizações/ Polvoritzacions. Tradução ao catalão: Fercho Marquéz-Elul & Jordà Saumell-Serra. Porto Alegre: Editora Huracay, 2023.

Negrers: la Catalunya esclavista. Direcció i guió: Jordi Portals. Televisió de Catalunya, só i color, 55’. Disponível em: https://www.ccma.cat/3cat/negrers-la-catalunya-esclavista/video/6203403/. Acessado em: 11 dez. 2023.

Pickpocket. Direção: Robert Bresson. Produção de Agnès Delahaie. França: 1959.

[1] Do original em catalão, significa Batedores de carteira: desde o fim do outono de 2022 até o início da primavera de 2023. Barcelona. A palavra catalã escurabutxaca, plural escurabutxaques que aqui nomeio este projeto, significando batedores de carteira, carteiristas ou punguistas, pode significar também na expressão màquina escurabutxaca a máquina caça-níquel. É formada pelo verbo escurar significando limpar, retirar, remover, vindo do latim vulgar *excūrāre (“limpar”), por sua vez de cūrāre cuidar; e butxaca, bolso, talvez relacionado ao latim tardio *bolga (“bolsa de couro”), ao francês bouge saco, bolsa e ao inglês budget com sentido anterior ao de orçamento ou provisão: mochila, saco, bolsa.
[2] Um bom exemplo, de que talvez as coisas parecem estar começando a mudar, é a peça teatral Amèrica de Sergi Pompermayer, dirigida por Julio Manrique, em cartaz, uma vez mais, de 6 de dezembro de 2023 a 21 de janeiro de 2024, no La Villaroel, Barcelona. Estrelada por Joan Carreras, Mireia Aixalà e Tamara Ndong – atriz equato-guineense catalã recentemente premiada melhor atriz revelação na 29ª edição dos Premis Butaca, tematiza o passado escravagista de uma família burguesa catalã: “Em 1863, um barco de propriedade de Juan Xifré, membro da alta burguesia barcelonesa, zarpa do porto de Havana com destino à Barcelona, levando em seu porão seus cavalos e acorrentada, uma escrava negra: América. Doente de desejo e raiva, mantém América confinada nos estábulos até que ela morre clamando por vingança. 11 de setembro de 2021, uma visita inesperada à mansão dos Xifré-Vidal, traz à tona os segredos mais obscuros da família e a vida e morte de América se fazem presentes.” Disponível em: https://www.teatrebarcelona.com/espectacle/america.
[3] No original: “En només 50 anys, més de mig milió de persones como jo van ser esclavitzades per negrers. Per entendre la magnitud de la xifra, la pudem comparar amb una altra dada: al llarg de tota la història, als Estats Units hi van arribar un nombre inferior d’africans esclavitzats: uns 400.000.”
[4] No original: “Si mirem només el tràfic il·legal d’esclaus, que són els darrers cinquanta anys, parlem de 1.400 vaixells. Multiplica-ho pel nombre de capitans, pel nombre de pilots, pel nombre de mariners, de nostramos… Multipliquem i multipliquem i veurem que el nombre de persones que s’hi van implicar era molt alt. I de fet van arribar gairebé 600.000 africans en aquests 50 anys. O sigui, que era il·legal, es feia d’amagat, però era uma activitat molt i molt important.”
[5] No original: “Els indians creen una nova classe social i fan ostentació. Han de demonstrar al món que han vingut del futur, que han creat unes fortunes i quan arriben a Barcelona com a capital de Catalunya […], el que fan és comprar un palco al Liceu de Barcelona i fer un gran panteó al cementiri. I per això, si ens anem fixant en les grans panteons d’aquest cementiri, veurem que tots tenen alguna reminiscència de relació amb ultramar. […] No es pot dir que Catalunya com a societat sería la mateixa si no hi hagués hagut aquesta nova classe social que van ser els indians. […] O sigui que els indians aporten un capital que crea noves infraestructures elètricas, de carreteres, porten l’aigua canalitzada a les ciutats, són la base del Modernisme, no hi hauria la Catalunya actual com l’entenem avui en dia sense totat aquesta herència. Però és que en aquella època tota la societat era esclavista, i fins i tot els capellans tenien esclaus.”
[6] Os pronomes catalães en e hi possuem apenas correspondência em francês com, respectivamente os pronomes en e y. Já o pronome neutro ho não possui correspondências nem em português ou outra língua latina. Substitui os pronomes demonstrativos açò, això isso e allò aquilo; uma oração independente e adjetivos ou substantivos que servem de predicado de ésser, ser, esdevenir, tornar-se, acontecer, estar, estar ou semblar, parecer.
[7] A escritura do local da modernidade – a cidade – não negligencia o movimento e os sistemas de transporte, muito menos o papel da máquina no percurso teleológico do progresso. Em muitos artistas, o deslocamento da cidade não era somente tema de seus trabalhos, quando na verdade era os próprios elementos, instrumentos e materiais com os quais as obras eram feitas, como o romance Zazie no metrô do francês Raymond Queneau ou 20 poemas para ler no bonde do argentino Oliverio Girondo, ou no contexto catalão, os Poemes en ondes hertzianes de Joan Salvat-Papasseit.
[8] No original: “J’écris, de temps à autre, des poèmes de métro. Ce poème en est un. […]/ Un poéme de métro compte autant de vers que votre voyage compte de stations moins un./ Le premier vers est composé dans votre tête entre les deux premières stations de votre voyage (en comptant la station de départ)./ Il est transcrit sur le papier quand la rame s’arrête à la station deux./ Le deuxième vers est composé dans votrê tête entre les stations deux et trois de votre voyage./ Il es transcrit sur le papier quand la rame s’arrête à la station trois. Et ainsi de suite.”