Última edição do Afrotonizar.Lab, com a exposição "Confluências e Fabulações Líquidas” no MAM Bahia. Na imagem, obra “Lamouro”, 2024, de Emanoel Saravá. Ao fundo, fotografia de Davi Cavalcante. Foto: Luan Teles

AFROTONIZAR: E OUTRAS PRÁTICAS DE CURADORIA E GESTOS DE CONTRACOLONIZAÇÃO

por Naymare Azevedo

17 de abril de 2025

Última edição do Afrotonizar.Lab, com a exposição "Confluências e Fabulações Líquidas” no MAM Bahia. Na imagem, obra “Lamouro”, 2024, de Emanoel Saravá. Ao fundo, fotografia de Davi Cavalcante. Foto: Luan Teles

Pensar em estratégias para construir espaços de pertencimento para a criação e experimentação artísticas de pessoas racializadas tem sido uma das minhas missões como pesquisadora e artista. Reconhecendo que esses corpos são cotidianamente atravessados por violências estruturais, a proposta de criar espaços onde práticas coletivas e de pertencimento possam florescer emerge como uma tentativa de experimentação para imaginar outros mundos possíveis. A plataforma Afrotonizar dedica-se à tarefa de repensar práticas curatoriais e criativas, apostando na fabulação como uma força motriz dos processos de criação e produção a partir de perspectivas contracoloniais.

Quando criei a plataforma Afrotonizar, pensei na urgência de propor outras imagens sobre a vida e as subjetividades de pessoas negras, e por entender que só com a prática e o exercício da criatividade é possível transformar o mundo em alguma proporção de realidade e me coloquei como agente deste movimento. Leda Maria Martins (1997), ao propor a ideia da cultura negra como uma encruzilhada, permite-nos pensar nas formas de intersecção dos sujeitos nas suas experiências de vida mediante às memórias coloniais presentes na construção de sua subjetividade. Ou seja, as dinâmicas de corpos que viveram encruzilhados no planejamento das estratégias necessárias para sobreviver em um sistema de confronto entre realidades diversas e imposições hegemônicas do ponto de vista da dominação cultural eurocêntrica. Ela ainda discorre:

A encruzilhada, locus tangencial, é aqui assinalada como instância simbólica e metonímica, da qual se processam vias diversas de elaborações discursivas, motivadas pelos próprios discursos que a coabitam. Da esfera do rito, da performance, é o lugar radial de centramento e descentramento, intersecções e desvios, texto e traduções, confluências e alterações, influências e divergências, fusões e rupturas, multiplicidade e convergência, unidade e pluralidade e origem e disseminação. (Martins, 1997, p. 28)

Se podemos compreender a cultura negra como este lugar de encruzilhada, em algum lugar da estrada é necessário arriar oferendas para que os caminhos se abram e as realizações aconteçam. Desta forma, materializar essas possibilidades de imaginários de mundo que existam fora da ordem da colonialidade através de práticas artísticas permite que o corpo racializado exista em sua plena liberdade criativa, que o seu corpo nesse espaço não seja vítima de violência e que o existir em coletivo não resulte em um estranhamento irresolvível e que a diferença cultural não seja uma questão de categorização. Exercitar práticas artísticas é uma forma de facilitar a construção de espaços e utilizar a formação como metodologia de prática artística possibilita o movimento contínuo entre quem aprende e quem ensina, propondo uma ideia orgânica da prática de trocas de saberes. Entendendo a prática como uma ideia de formação espiralar, onde as dinâmicas dos saberes se entrelaçam e dissolvem as relações hierarquizadas pela noção vertical do ensino.

 

Afrotonizar é o estudo negro em sua prática, na sua execução, que anuncia esses movimentos de outras possibilidades de experimentar a vivência coletiva em coexistência com a diferença cultural. Para Fred Moten e Stefano Harney (2017), o estudo preto nos permite investigar nossas conexões e tecer os nossos mantos escuros. Trata-se do encontro entre o pertencimento e o estranhamento. É a ideia de lidar com o outro se permitindo a aberturas e transbordas de limites e subjetividades. Ao nos propor o exercício de imaginação política coletiva, estamos também difundindo nossas sementes, caçando solo fértil para nossos sonhos e encruzilhadas para arriarmos nossas oferendas criativas e nos conectarmos com os nossos pares. O estudo negro se trata de uma estratégia de livramento que possibilita acionar a luz negra que nos faz chegar com transparência àquilo que está ordenado pelo colonial.

O estudo preto anuncia o fim do mundo como conhecemos e o limite é a condição do salto. Investigar os limites da justiça, do texto moderno, da fronteira, da separabilidade racial e da diferença buscando não pela verdade dessas categorias, mas por um estudo que extrapole seus domínios e escape suas operações (Mattiuzi Mombaça 2018, p. 25).

Quando penso em estratégias de livramento, penso em mandinga, feitiço, quebranto, patuá, reza, oração ou quaisquer outras evocações do cuidado. Precisamos entender e exercitar as práticas que desafiam a lógica de que determina que a criação oriunda do estudo negro é apenas mais um produto do mundo ordenado, que reproduz o extrativismo e distorce a perspectiva e que nos faz acreditar na ideia da linearidade progressista democrática. No mundo onde a autonomia se faz real, a diferença se torna elo de conexão e não de separabilidade, sequencialidade e determinabilidade. Neste movimento de aquilombamento e aldeamento, navegamos pela construção de espaços seguros para a criação artística de pessoas negras e indígenas. Propomos uma imersão criativa e formativa onde os artistas são incentivados a investigar os modos pelos quais percebemos e moldamos o mundo. Essa jornada nos conduz a desbravar zonas fertilizadas pelos mistérios da condição de ser vivente, onde as estratégias de livramento ganham forma através da prática de imaginários que subvertem a separabilidade imposta pela colonialidade. Aqui, a diferença cultural é celebrada não como divisão, mas como a possibilidade de cocriarmos e existirmos para além das violências do mundo ordenado.

O projeto pedagógico da Afrotonizar propõe exercícios criativos que ativam memórias ancestrais, costurando e projetando imagens de futuros por meio de práticas artísticas em diferentes linguagens. As obras e processos resultantes da experiência expressam a inseparabilidade dos elementos naturais — água, terra, fogo e ar —, que podem ser sentidos através do som, da imagem e da intuição. Essas criações são movimentos que se conectam diretamente com quem se abre para a experiência de ativar outras formas de enxergar o mundo para além da determinabilidade. De maneira espiralar e confluente, fotografias, pinturas, esculturas, têxteis, instalações sonoras e visuais compõem a exposição coletiva, propondo um novo olhar sobre a cena contemporânea e suas práticas curatoriais.

Afrotonizar.Lab: registro da exposição “Confluências e Fabulações Líquidas” no Museu de Arte Moderna da Bahia – MAM, em 2024. Foto: Luan Teles

A proposta é proporcionar o convívio e a construção de relações significativas, utilizando a tecnologia do encontro como ferramenta central. Nesse contexto, os artistas que participam das práticas da plataforma têm a oportunidade de trocar experiências com outros artistas, curadores e pesquisadores, confluindo suas práticas artísticas, explorando novas linguagens e rompendo com os limites das ideias impostas pelo sistema artístico e sua visão individualista de criação. Simultaneamente, a plataforma incentiva o autoestudo, acionando memórias ancestrais e promovendo processos de cura para os traumas decorrentes da colonialidade. Buscando sempre propor tecer reflexões sobre a crítica institucional, refletindo sobre como as dinâmicas de enquadramento no sistema das artes reproduzem as lógicas de violências estruturais impostas pela colonialidade.

Portanto, o nosso trabalho é um gesto de contracolonização que busca fertilizar o campo das artes com práticas de liberdade, conectando o passado e o futuro por meio de críticas e fabulações, sempre em busca de um presente que respire autonomia, pertencimento e resistência criativa.

 

Referências:

AZEVEDO, Naymare. Afrotonizar: Estratégias de livramento e processos de criatividade e cura. 2024. Dissertação (Mestrado em Cultura e Sociedade) – Instituto Milton Santos, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2021.

MARTINS, Leda Maria. Afrografias da memória: o Reinado do Rosário no Jatobá. Belo Horizonte: Mazza Edições, 1997.

MOTEN, Fred; HARNEY, Stefano. Sobcomuns: planejamento fugitivo e estudo negro. Trad. Mariana Ruggieri, Raquel Parrine, Roger Farias de Melo e Viviane Nogueira. São Paulo: Ubu Editora, 2024.

FERREIRA DA SILVA, Denise. A Dívida Impagável. Trad. Amilcar Packer. São Paulo: Casa do Povo; Oficina de Imaginação Política, 2019. Disponível em: https://casadopovo.org.br/wp-content/uploads/2020/01/a-divida-impagavel.pdf.

 

A produção deste artigo é apoiada pelo Instituto Ibirapitanga.