
MAHAMA-MAVIGNIER: PROPOSTAS CURATORIAIS DA DIÁSPORA AFRICANA NA PÓS-(EX)-IUGOSLÁVIA
por André Pitol
16 de janeiro de 2025

Entre março e abril de 2024, morei em Ljubljana, capital da Eslovênia, como pesquisador residente no Centro Internacional de Artes Gráficas (MGLC), após ter aceitado o convite para participar do From Biennale to Biennale. O projeto celebra os 70 anos de criação da Bienal de Artes Gráficas de Ljubljana e propõe a realização de um conjunto de trabalhos inéditos que serão apresentados na 36ª edição da exposição, em junho de 2025. Se o fato de já ter visitado a cidade em outros momentos não fazia dela uma novidade, o mês que passei no MGLC Švicarija Creative and Residential Centre, no meio do incrível Parque Tivoli, me permitiu entender um pouco mais o cotidiano da cidade, conhecer melhor suas instituições artísticas e, principalmente, entrar em contato com os trabalhadores da cultura, o que trouxe um sentido ainda maior para essa residência de pesquisa artística.
A residência foi um momento de atualização de algumas pesquisas que produzi sobre a arte e a curadoria daquela região: a investigação das participações da delegação da Iugoslávia nas Bienais Internacionais de São Paulo nas décadas de 1950 e 1960, assim como os quatro anos de estudos de projetos artísticos e curatoriais, que resultaram na tese de doutorado A curadoria diante do digital: Processo curatorial como prática artística em três projetos do Leste Europeu (East Art Map, Bosnia and Herzegovina Art Map e Invisible Matter – East Art Map). Ela foi, principalmente, uma oportunidade de prosseguir falando sobre processos curatoriais e práticas artísticas e transformá-los em algo novo, a partir de uma perspectiva afro-diaspórica apenas aparentemente deslocada no cenário em questão, mas incrivelmente potencializada nas proposições curatoriais de dois artistas que desenvolveram suas poéticas em diferentes momentos nesse mesmo lugar: Ibrahim Mahama e Almir Mavignier.

Vista para o Centro Internacional de Artes Gráficas e para a cidade a partir do MGLC Švicarija Creative and Residential Centre, ambos no Parque Tivoli, Ljubljana, Eslovênia, março de 2024. Foto: André Pitol
Ibrahim Mahama (1987) é artista conhecido por suas grandes instalações criadas com sacos de juta, trilhos de ferrovia e outras estruturas vinculadas aos transportes comerciais e à economia global; seu nome ressoa mais para nós por conta de sua participação na 35º Bienal de São Paulo (2023). Sua proposta para o evento foi Parliament of Ghosts, instalação que recria o espaço do Red Clay Studio, uma instituição cultural criada por ele em Tamale (Gana) e que é caracterizada por suas arquibancadas feitas de tijolos vermelhos, um cenário parlamentar “para configurar um local de trabalho coletivo negro, produção cultural e discurso”, como comenta Mario Gooden.
Mahama tem uma poética constituída pelo trabalho com grandes espaços e um comprometimento com instituições culturais – além do Red Clay, ele também fundou o Savannah Centre for Contemporary Art (SCCA) o e o Nkrumah Volini, ambas em Gana. Nesse sentido, minha residência de pesquisa tinha também grande interesse em conhecer a experiência da 35º Bienal de Artes Gráficas de Ljubljana (2023), que teve Mahama como diretor artístico. Meu foco nos processos curatoriais e práticas artísticas ganhava ali um novo personagem, na medida em que Mahama participou como artista de uma Bienal enquanto, na outra, ocupou uma função curatorial, liderando a equipe composta por Alicia Knock, Selom Koffi Kudjie, Inga Lāce, Beya Othmani e Patrick Nii Okanta, como parte do Exit Frame Collective.
Intitulada “Do vazio vieram presentes do cosmos” (From the void came gifts of the cosmos), a proposta curatorial de Mahama retomou seu interesse pela história econômica e infraestrutural de Gana, especialmente a gestão do primeiro presidente pós-independência, o teórico pan-africanista Kwame Nkrumah, em sua política afirmativa e emancipatória de criação da uma infraestrutura intelectual, cultural, científica e econômica, que definiu Gana nos anos 1960. Tal política está vinculada a laços importantes de cooperação e solidariedade com o Movimento dos Não Alinhados (NAM), criado em 1961, e que teve Gana como membro-fundador, juntamente com Egito, Índia, Indonésia e Iugoslávia – república de seis estados federados socialistas, entre eles a Eslovênia.
Foi no contexto da NAM que, nos anos 1950 e 1960, os países integrantes criaram diversas colaborações no campo da política, da indústria e da arquitetura, em modelos cooperativos internacionalistas no pós-guerra. A própria criação da Bienal de Ljubljana em 1955, em meio à Guerra Fria, foi um vetor para ultrapassar fronteiras nacionais e ideológicas, convidando participantes dos países parceiros não alinhados na África e na Ásia. Nesse sentido, a proposta de Mahama faz da Bienal uma reflexão sobre os vazios, momentos perdidos da história de onde se permite recontar histórias compartilhadas, um cosmos de diferentes relacionamentos baseados em solidariedade, amizade e intimidade.

Ibrahim Mahama. Do vazio vieram presentes do cosmos, 2023. Água-tinta e verniz mou, 50 cm x 40 cm. Detalhe do esboço para o conceito da 35ª Bienal de Artes Gráficas de Liubliana. Impresso no MGLC Print Studio.
A rede de solidariedade e a disseminação de espaços de criação artística entre os Não Alinhados é justamente o nó que conecta a proposta artístico-curatorial de Mahama à experiência de outro artista afro-diaspórico na Iugoslávia dos anos 1960: Almir Mavignier (1925-2018). Trata-se de uma experiência bastante desconhecida de sua trajetória, considerando que, para o público brasileiro, sua importância como pintor e artista gráfico afro-brasileiro reside em sua participação no Ateliê de Pintura e Modelagem no Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II, no Engenho de Dentro, entre 1947 e 1951, assim como na contribuição central para o movimento concreto e para as demais neovanguardas de tendência construtivista e óptica nos anos 1960 – tendo ele estudado Comunicação Visual na Escola Superior da Forma em Ulm, e se estabelecido como professor de artes gráficas em Hamburgo, onde residiu até 2018.
A esse respeito, refiro-me ao engajamento curatorial de Mavignier na concepção da mostra Novas Tendências (NT), primeira da série de exposições realizadas em Zagreb (Croácia) entre 1961 e 1973, e que produziu um importante movimento artístico dedicado à pesquisa visual, à op-art e também a outros segmentos experimentais da neovanguarda europeia, tudo isso em um contexto geopolítico de não alinhamento iugoslavo frente à bipolaridade da Guerra Fria. Novas Tendências é resultado do contato de Mavignier com o crítico de arte croata Matko Meštrović, que resultou em uma proposta de exposição que reunisse diferentes poéticas contemporâneas, realizada na Galeria de Arte Contemporânea (atual Museu de Arte Contemporânea) de Zagreb.

Almir Mavignier posa entre seus trabalhos apresentados na exposição Novas Tendências, na Galeria de Arte Contemporânea de Zagreb, Iugoslávia (atual Croácia), 1961. In: Tiziana Caianiello; Mattijs Visser; Dirk Poschmann. The Artist as Curator: Collaborative initiatives in the international Zero Movement 1957-1967. Dusseldorf: ZERO Foundation; Gand: AsaMER, 2015.
A centralidade de Mavignier na curadoria de uma exposição em um país socialista evidencia as movimentações transregionais e transnacionais experienciadas pelo artista, assim como reconhece sua dimensão afro-brasileira frente aos circuitos hegemônicos da arte, qualificando sua experiência curatorial no Leste Europeu como um episódio pontual, mas singular, da contribuição da produção afro-brasileira na arte. A pesquisadora Ljiljana Kolešnik verificou que a organização da primeira edição de Novas Tendências, em 1961, só aconteceu porque Mavignier ativou sua rede pessoal de contatos com artistas tanto da América Latina (como Lygia Clark, Waldemar Cordeiro, Franz Weissmann, Ivan Serpa e Tomás Maldonado), quanto da Europa Ocidental (como Heinz Mack, Otto Piene, Piero Manzoni, Enrico Castellani, Günther Uecker, Jean Tinguely, Lucio Fontana), segundo Kolešnik, criando uma geografia da arte contemporânea bastante diferente do que aquela definida pelas localizações da arte convencional da época e demonstrando, com isso, uma complexidade que perpassa a própria narrativa do artista sobre a curadoria da exposição.
Mahama-Mavignier. Dois cosmos de temporalidades diversas em um mesmo espaço vazio: a Iugoslávia que não existe mais como unidade compartilhada, e cuja história ainda permanece em determinados circuitos artísticos, como Ljubljana. Mahama toca um passado que o havia tocado, a partir de estruturas de solidariedade remanescentes. E, ao atualizar essa estrutura de solidariedade para o presente, abre espaço para que Mavignier também seja tocado por aquelas políticas culturais de tempos não alinhados.