Obra Parede da Memória (1994-2005), de Rosana Paulino, exposta na Pinacoteca de São Paulo em 2018. Foto: Reprodução

ARTE CONTEMPORÂNEA PARA UMA PEDAGOGIA DECOLONIAL DO PATRIMÔNIO CULTURAL

por Lucas de Vasconcellos

7 de julho de 2023

Obra Parede da Memória (1994-2005), de Rosana Paulino, exposta na Pinacoteca de São Paulo em 2018. Foto: Reprodução

A arte contemporânea desempenha um papel fundamental na desconstrução dos padrões estabelecidos e na abertura de novos horizontes no campo dos museus e do patrimônio cultural. Ela evidencia o poder de questionar as narrativas dominantes, trazer à tona vozes marginalizadas e instigar debates relevantes para a sociedade. Nesse contexto, a noção de pedagogia decolonial emerge como uma abordagem crítica que busca romper com os legados coloniais e eurocêntricos presentes nesses espaços, permitindo uma apreciação mais ampla e inclusiva da produção artística.

A teórica e ativista equatoriana Catherine Walsh contribui significativamente para a compreensão da pedagogia decolonial. Sua proposta visa desmantelar as estruturas e os padrões coloniais presentes no campo da educação e em outras esferas sociais. Ela enfatiza a importância de reconhecer e valorizar o conhecimento e as perspectivas dos povos colonizados, promovendo uma abordagem inclusiva e pluralista no ensino e na produção do conhecimento.

Ao aplicar o conceito de pedagogia decolonial à arte contemporânea no contexto dos museus e do patrimônio cultural, podemos analisar como a produção artística de autoria negra e as intervenções artísticas, como o conjunto da obra “Atlântico Vermelho” de Rosana Paulino, contribuem para uma pedagogia que questiona as narrativas históricas dominantes e desafia o imaginário construído pelo legado colonial.

Rosana Paulino é uma artista visual e educadora que se destaca ao refazer as narrativas históricas por meio de sua obra. Ela “tenciona diferentes faces do tempo histórico que as imagens do passado comportam” (FABRIS, 1999), explorando coleções pessoais, arquivos institucionais e vestígios materiais que legitimam os discursos hegemônicos das matrizes coloniais de poder.

Imagem de vista da exposição Atlântico Vermelho, de Rosana Paulino Nota. Em sequência, da direita para a esquerda, a obra Gabinete de Curiosidades, uma das obras da série Atlântico Vermelho e duas obras da série de colagens Filhas de Eva. Foto: Frame extraído do vídeo institucional realizado pelo Padrão dos Descobrimentos, em 2017.

Dessa forma, a arte contemporânea nos museus serve como uma ferramenta pedagógica para descolonizar o conhecimento, proporcionando uma visão crítica e alternativa da história e permitindo que diferentes vozes e perspectivas sejam ouvidas e valorizadas. A valorização da diversidade da produção artística de autoria negra é um aspecto significativo dessa discussão. Por muito tempo, a arte negra foi marginalizada, estigmatizada e excluída das narrativas hegemônicas. No entanto, nas últimas décadas, artistas negros têm emergido e reivindicado seu espaço, reconfigurando os padrões estéticos e ampliando as possibilidades de representação.

Os museus desempenham um papel crucial ao abrir suas portas para a arte contemporânea de autoria negra e repensar suas práticas curatoriais e expositivas. Um exemplo marcante ocorreu em 2017, com a obra “Atlântico Vermelho”, realizada no Padrão dos Descobrimentos, um monumento em Lisboa. No trabalho, Paulino problematizou o legado colonial português, evidenciando a violência e as injustiças inerentes ao processo de colonização. A exposição não apenas trouxe à tona as histórias silenciadas das populações negras, mas também promoveu um debate acalorado no cenário lusófono sobre o direito à memória no contexto do Brasil e de Portugal.

O Padrão dos Descobrimentos foi erguido em uma das extremidades do oceano atlântico, às margens do Rio Tejo, apresentando narrativa escultórica que remonta à história das invasões para a formação das colônias, além de exteriorizar sentidos de dominação e poder relacionados ao império português. Não por acaso, em 2021, o monumento amanheceu com a mensagem “Blindly sailing for monney, humanity is drowning in a scarllet sea lia” que, traduzida para o português, pode ser interpretada como “Velejando cegamente por dinheiro, a humanidade afunda-se num mar escarlate”. Não estando isento, portanto, do olhar crítico da sociedade acerca da noção historiográfica que emana, mesmo com toda a pompa e circunstância que oblitera as centenas de caravanas de viajantes que carregam consigo, sob a forma de souvenir, a imagem afetuosa que a apropriação do capital constrói passivamente sobre as narrativas do colonizador.

Imagem da pichação realizada no Padrão dos Descobrimentos, em 08 de agosto de 2021. Foto: António Cotrim/Reprodução.

No cenário internacional das artes, podemos localizar em diferentes momentos determinado perfil de produções que, para a crítica de arte, se enquadram como story art, uma tendência artística que toma corpo no início dos anos de 1970, marcada pelo confronto entre uma história particular e a historiografia hegemônica. Como o caso do artista nova-iorquino Fred Wilson que, em 1992, realizou a exposição “Minning the Museum” (Escavando o Museu), que ocorreu no Museu de Arte Contemporânea (Contemporary Museum) em Baltimore, Maryland, nos Estados Unidos.

Em caráter de instalação, exposição e projeto curatorial, a proposta reexaminou a coleção permanente do museu e apresentou objetos e artefatos históricos de uma perspectiva crítica, explorando questões de raça, poder e representação. O trabalho explorava também questões de identidade, colonialismo e aspectos museográficos, desafiando as narrativas estabelecidas e expondo as estruturas de poder presentes nas instituições culturais. Wilson ficou conhecido por sua habilidade em recontextualizar objetos e artefatos históricos, questionando sua interpretação convencional e destacando as exclusões presentes nessas narrativas. Sua abordagem crítica e sensível oferece uma perspectiva importante sobre a história e a cultura, desafiando os espectadores a questionarem suas próprias percepções e preconceitos.

Ao relacionar o trabalho de Rosana Paulino com a obra de Fred Wilson, percebemos um diálogo profundo entre as práticas desses artistas em relação ao campo da museologia. Enquanto Paulino confronta os legados coloniais e discute o direito à memória, Wilson questiona a narrativa oficial dos museus, revelando as assimetrias e exclusões presentes nas coleções e nas estruturas curatoriais. Ambos exploram o potencial de transformação dos museus, expondo e subvertendo as narrativas dominantes e oferecendo novas perspectivas sobre o patrimônio cultural.

Imagem de vista da instalação Mining the museum. Obra Metalwork (1793-1880) de Fred Wilson, na Maryland Historical Society (1992-1993). Foto: Reprodução.

Esses exemplos evidenciam a importância dos cruzamentos entre a museologia e as artes, permitindo um diálogo fértil que enriquece ambos os campos. A museologia contemporânea não pode mais se limitar a uma visão estática e conservadora do patrimônio cultural, mas deve estar aberta à diversidade de expressões artísticas e às demandas da sociedade atual.

Em conclusão, a arte contemporânea no campo dos museus e do patrimônio cultural, como pedagogia decolonial, valoriza a diversidade da produção artística de autoria negra e desconstrói narrativas dominantes. O trabalho de artistas como Rosana Paulino e intervenções como “Atlântico Vermelho” trazem à tona histórias silenciadas e estimulam o debate sobre o direito à memória. Relacionando essas práticas com a obra de Fred Wilson, percebemos a importância de repensar os museus como espaços de transformação, capazes de expor e subverter as narrativas hegemônicas. Esses esforços conjuntos contribuem para uma sociedade mais inclusiva e para uma apreciação mais ampla da arte e do patrimônio cultural.

 

A produção deste artigo é apoiada pelo Instituto Ibirapitanga.

 

Referências:

FABRIS, Annateresa. Percorrendo veredas: hipóteses sobre a arte brasileira atual. Revista USP, São Paulo, n. 40, p. 68-77, dez./fev. 1999.

WALSH, Catherine. Pedagogías Decoloniales. Práticas Insurgentes de resistir, (re)existir e (re)vivir. Serie Pensamiento Decolonial. Editora Abya-Yala. Equador, 2017.