Sertão Negro Ateliê e Escola de Artes, em Goiânia. Foto: Paulo Rezende

EXERCÍCIOS DE MAPEAMENTOS PARA ALTERAR OS CENTROS: CONTRIBUIÇÕES E PROVOCAÇÕES

por Luciara Ribeiro

16 de maio de 2023

Sertão Negro Ateliê e Escola de Artes, em Goiânia. Foto: Paulo Rezende

Nos últimos anos, temos acompanhado o crescente aumento de pesquisas que se apoiam no exercício de mapeamento para compreender o panorama das artes e sua expressividade no território nacional. O Projeto Afro é um exemplo, onde o exercício de mapeamento serve tanto quanto ação como resultado, gerando possibilidades críticas para repensar as estruturas. Iniciado entre 2016 e 2017, pelo pesquisador e curador Deri Andrade, com o interesse de contribuir para o alargamento dos estudos voltados aos artistas afro-brasileiros nas histórias das artes no Brasil, a pesquisa pessoal logo se transformou em plataforma digital pública. Em junho de 2020, o site foi ao ar trazendo referências de autorias negras enquanto artistas, pesquisadores, curadores e educadores. Começamos querendo conhecer as iniciativas que possuem projetos em relação ao país ou à cidade na qual se articula.

De lá pra cá, tem se conseguido apresentar importantes nomes para as artes brasileiras, em especial, as contemporâneas; fortalecendo a circulação e a cadeia sistêmica que une as produções, seus produtores e pensadores. Um de seus principais objetivos se dá na visualização dos agentes citados na distribuição do território nacional, o que contribui tanto para reforçar a imensa presença desses artistas e suas produções, quanto para evidenciar que ainda lidamos com gritantes desequilíbrios nos conhecimentos das regiões fora do eixo sudestino. Aliás, nesse ponto, o Projeto Afro ainda carece de mais artistas, no mapeamento, de outras regiões do país, uma vez que a presença entre artistas do Sudeste em relação às outras regiões ainda é desigual. Neste ano, o Projeto Afro recebe o apoio do Instituto Ibirapitanga para viabilização das ações do período, outro passo importante na trajetória da plataforma.

Iniciativa do Projeto Afro, que criou o app “Além da Tela”, a partir do edital ProAC nº 15 2020 e o apoio da Tatu Cult.

Outra iniciativa pensada por meio do exercício de mapeamento, como o próprio título anuncia, foi o Mapeamento de Curadores e curadoras negros, negras e indígenas brasileiros, publicado em julho de 2020 no próprio site do Projeto Afro, em uma parceria de sua elaboradora (e autora deste texto) com a Rede de Pesquisa e formação em curadoria de exposição e o coletivo Trabajadores de Arte, ambos projetos coletivos que buscam refletir criticamente os modos operantes do sistema das artes. O Mapeamento em questão, foi organizado entre meados de 2019 e 2020, através da colaboração de diversas pessoas via redes sociais, que também inquietam com a pouca visibilidade e participação de curadores negros/negras e indígenas no campo. De lá pra cá, esse número tem aumentado, sem dúvidas, mostrando o impacto gerado com a divulgação do projeto. Inicialmente com cerca de 76 nomes de curadores negras/negros e 20 curadoras e curadores indígenas, números expressivos para aquele momento, visto que se mantia com naturalidade o discurso de ausência em cima dos curadores negres e indígenas, o que o projeto demonstrou ser inverdade, já que tais profissionais não só existem como estão propondo novas tecnologias e conhecimentos para pensar e fazer arte e curadoria.

Como processo de desdobramento desta pesquisa, em 2022, o vídeo “Narrativas e Territórios em disputa: Investigações sobre os sistemas das artes”, elaborado para o Programa Atos Modernos, da Pinacoteca do Estado de São Paulo em parceria com a Coleção Yunes, e curadoria de Horrana Santoz, que documentou visita aos ateliês dos artistas Ramo, na cidade de Mauá, região do ABC Paulista; de Nalu Rosa e Renan Teles, na região de Itaquera; Jair Guilherme, no Jardim São Luís, na zona sul; Carol Itzá, no Campo Limpo, também na Zona sul. Esses artistas e seus ateliês criam um circuito único e independente do centro hegemônico e institucional das artes no âmbito da cidade de São Paulo, que, convidada a propor elucidações a partir do pensar a modernidade na atualidade, o ensejo apresentado foi o de observar, através das artes, a produção realizada às margens do desenho de cidade moderna que foi arranjada a nós. Para isso, foram realizadas uma série de visitas e entrevistas com artistas e pesquisadores que atuam nas margens da cidade de São Paulo, em territórios ainda vistos como fora, pouco penetráveis para as artes contemporâneas. A compreensão de que a resistência se faz em coletividade me moveu junto a Paulinho Sacramento para ouvir e evidenciar as propostas que tais pesquisadores e artistas traziam consigo.

Programa “Atos Modernos”, da Pinacoteca do Estado de São Paulo, curadoria de Horrana Santoz. Foto: divulgação

Além de acompanhar as alterações e movimentações do sistema, aproximar experiências, verificar suas divergências e semelhanças, o exercício de mapeamento é uma importante ferramenta para localizar metodologias inovadoras e observar como produtores negros tem se movimentado criativamente. O exercício de mapeamento não é referenciado aqui com o desejo de criar “listas temáticas” que aparecem com frequência nas redes e mídias, em formato de listas. Além de, geralmente, hierarquizar e especular, buscam atrair a atenção, individualizante, para determinados agentes ou temas, o que nem sempre nos agrada. Seguindo pela via do mapeamento, temos organizado modos de observação que visualizam  projetos e ações de potenciais transformadores que surgem fora dos eixos de hegemonia, como as redes sudestinas Rio-São Paulo. Queremos conhecê-los, principalmente, aqueles que estão fomentando fazeres coletivos e inovadores, em processos colaborativos ou que visam a produção coletiva das artes.

Nesse sentido, dois projetos lançados recentemente – e que chamaram a atenção – são o Sertão Negro Ateliê e Escola de Artes, em Goiânia, dirigido pelo artista plástico Dalton Paula,  e o ateliê residência Irê: arte, praia e pesquisa, em Salvador, com gestão de Rebeca Carapiá.  Ambos projetos que demonstram que é possível criar novas instituições e visões artísticas, com ações coletivas como sinônimo de afeto, partilha e cura. Espaços livres, artistas livres para criarem sozinhos ou em dupla, etc. Um dos pontos que chamam a atenção neste processo é a persistência de ambos artistas em fazerem suas existências junto a outros artistas.

Sertão-Negro é resultado da entrega generosa do casal, Dalton Paula e Ceiça Ferreira, que abrem parte da sua casa para acolher artistas de diversas regiõesdo Brasil, e fomentam deste modo a circulação, os encontros e os debates sobre as artes afro-brasileiras atuais. Além disso, criam no Setor Shangri-lá um circuito artístico deslocado do habitual, com um espaço de pesquisa múltiplo, envolvendo conhecimentos ambientais, construtivos, de educação e das diversas linguagens artísticas. As parcerias realizadas pelo casal vão desde a concepção do espaço à sua construção, que tem também por assinatura o desenho arquitetônico da artista visual e importante nome das artes brasileiras, Eneida Sanches.

Sertão Negro Ateliê e Escola de Artes, em Goiânia. Foto: Paulo Rezende

Em outra capital, na baiana, Rebeca Carapiá também abriu, recentemente, o seu ateliê para fomentar agrupamentos de artistas afro-brasileiros e afro-diaspóricos. Localizado no Largo de Roma, região da Cidade Baixa, o projeto Irê: arte, praia e pesquisa já recebeu artistas como George Teles, Iagor Peres e a parisiense Soñxseed, que utilizaram as instalações do imenso galpão para realizar novas produções, pesquisas e intercâmbios culturais. Segundo Carapiá, em post no Instagram do espaço, “Irê abre os caminhos para receber, cultivar e criar espaços de presença, prática e liberação cognitiva entre pessoas interessadas no coletivo. Irê deseja dividir, multiplicar e pensar arte a partir de novas centralidades para o conhecimento”. E assim acreditamos por aqui! Que processos como esse, que visem a comunicação e o fortalecimento dos encontros, sigam vivos e gerando frutos.

Ateliê residência Irê: arte, praia e pesquisa, em Salvador. Foto: divulgação

As ações aqui citadas corroboram com a retórica de que os meios de fruição de pensamento e práticas artistas mostram-se defasados quando observamos alguns movimentos institucionais, ainda calcados em estreitas relações consigo mesmos ou com uma gama de pensadores do seu entorno. Estabelecer novas relações coletivas de trocas e sabedorias se faz cada vez mais necessário, em um cenário no qual a arte e a cultura tentam se reerguer de anos de descasos e sucateamentos, principalmente quando lembramos, justamente, de projetos independentes que tentaram (e tentam) sobreviver no período. Buscar novas formas de pensar e agir é um dos parâmetros do Projeto Afro e de diversos outros movimentos que nascem em paralelo à criação da plataforma.

 

A produção deste artigo é apoiada pelo Instituto Ibirapitanga.