Luciane Ramos, 2019 - Série sentimentos das ruas, fotografia de Tiago Alexandre Santana. Cortesia do artista

CONVERSA COM ARTISTA: TIAGO ALEXANDRE SANTANA

por Deri Andrade

19 de agosto de 2021

Luciane Ramos, 2019 - Série sentimentos das ruas, fotografia de Tiago Alexandre Santana. Cortesia do artista

Tiago Alexandre Santana vem criando imagens que perpetuam um campo de pluralidades negras em registros documentais. No currículo, destaca-se a realização de trabalhos para veículos de imprensa, sendo esse labor um dos grandes vetores por seu interesse em investigar a fotografia como uma prática artística. Com um histórico familiar, sua relação com a prática dá-se, também, enquanto legado do fotojornalismo exercido por seu pai e por outros/as fotógrafos/as que o artista tem como referência. Nessa conversa com o Projeto Afro, Santana conta como se iniciou nesse campo, apresenta as séries que tem desenvolvido e fala da importância de coletivos como o Afrotometria, fundado por ele e pelos colegas Sérgio Fernandes, Isabela Alves, Fernando Solidade, Ina Henrique e Roger Cipó. Confira logo abaixo.

Tiago Alexandre Santana, 2019. Foto: Fernando Solidade/Divulgação

Deri Andrade (Projeto Afro): Como surgiu o seu interesse pela fotografia? Poderia nos contar um pouco da sua trajetória e como se iniciou nas artes?

Tiago Alexandre Santana: A fotografia sempre esteve presente na minha vida cotidiana desde que nasci, pois, meu pai era fotógrafo (hoje, ele está aposentado como fotojornalista). Então, via a fotografia como algo comum. Quando comecei a trabalhar como fotógrafo, quando fiz dezoito anos, em 2009, encarei a fotografia como um trabalho braçal, e escolhi essa profissão pela proximidade que tinha com o meio. Fiz parcerias com agências, fiz minhas publicações em jornais, revistas, sites, sempre encarando a atividade de forma “operária” … Só depois que comecei o processo de empretecer meu pensamento, atitude e vivência pude me descobrir na arte da fotografia e hoje me vejo como um artista em desenvolvimento.

DA: Um interesse em comum por parte de fotógrafos/as/es negros/as/es é uma prática que busca na fotografia documental uma vertente poético-narrativa. Como seu trabalho se desenvolve a partir desses registros?

TS: A partir do momento que nós, enquanto pessoas pretas (fotógrafas ou não), registramos em imagens o movimento de uma pessoa preta, automaticamente estamos fazendo um relato de nós mesmos. Eu entendi isso depois que comecei a analisar as obras de artistas e intelectuais como Wagner Celestino, Moacir Santos, Amos Wilson, Maria Auxiliadora, Renata Felinto. Percebi que a necessidade do estudo e registro do que vivemos nesse tempo vai além da emancipação própria, mas sim, da necessidade de deixarmos nossas impressões – que já vêm sendo invisibilizadas no decorrer dos séculos, para quem chegar posteriormente entender que houve, sim, arte, poesia, informação, ligadas às raízes e tradições, que dão continuidade a um trabalho de emancipação coletivo do povo preto.

Ensaio Espelho Preto, Nº 3, 2017, fotografia de Tiago Alexandre Santana. Cortesia do artista

DA: Podemos perceber esse mesmo exercício na sua série Espelho Preto, que lida com questões como imagens, símbolos, raízes e tradições da cultura afro-brasileira. Poderia comentar sobre essa série?

TS: Espelho Preto é a passada mais firme que já dei até o momento enquanto fotógrafo. Num momento de crise eu confessei pra minha Yalorixá Adriana Guedes que estava me sentindo desanimado na minha profissão “que não tinha conteúdo”, então, ela me explicou que meu conteúdo é Orixá e além disso. Ela me provou que podemos fazer um bom trabalho, quando olhamos pra dentro de nós e nos fortalecemos, unidos. Ela, além de cantora (procurem Adriana Guedes no Spotify e a ouçam com o coração), é artista visual e produtora, então me pediu ideias, coisas que gostaria de fazer. Fiz alguns esboços tímidos pra ela, que entendeu o que eu queria fazer, e chamou amigos e amigas para fazer iluminação, cenário, maquiagem, realizar as ideias que eu tinha passado a ela, que basicamente era, em dois dias, fotografar modelos, pretos e pretas, envoltos de tecidos coloridos, para tentar simbolizar as dualidades de força, liberdade, beleza e cor. Essa série é uma escola para mim até hoje, pois sempre me baseio nas experiências que tive nos dias de pré-produção, ensaio, e todo o processo que tive de curadoria para escolher qual seria a linearidade das fotografias, escrever um projeto com carinho e atenção, tentar inscrever em editais e me frustrar ao não ser aprovado. Entender como funciona o mercado da arte, editais públicos, privados… As possibilidades de expor de forma independente e o aprendizado e conquistas que isso traz; essa série me levou para a Espanha, lugar que nunca pensei em expor ou dar oficinas. Mas, o principal aprendizado que o Espelho Preto me traz é que para nos entendermos de frente ao espelho, o verdadeiro reflexo que importa é aquele que vem do nosso interior.

Série Casa de mãe, Nº 6, 2019, fotografia de Tiago Alexandre Santana. Cortesia do artista

DA: Também observamos na sua prática um desejo por registros em preto e branco, muito utilizado por fotógrafos/as/es de outras gerações, como Januário Garcia, Lita Cerqueira, Bauer Sá. De que forma o uso do preto e branco impacta nas suas escolhas e na sua produção artística?

TS: A série Espelho Preto inicialmente foi pensada para ser colorida, fiz o estudo de tecidos e texturas, mas no momento de tratamento, quando passei para preto e branco, não consegui pensar em nenhuma outra forma de expor. No momento, não entendi o motivo, mas analisando obras de outros fotógrafos, entendi o porque da minha intuição sempre me levar ao preto e branco, entendi que  dessa forma o meu assunto principal, que geralmente é a pessoa preta, fica evidenciada na imagem a beleza de traços, sorrisos, olhares, o próprio afeto transmitido na imagem fica mais evidente, ao meu ver. Não que fotos coloridas não transmitam emoção (uma fotógrafa amiga querida, Daisy Serena, um dia me disse que minhas fotografias tem cor de abraço, esse elogio está emoldurado no meu coração), mas fotografias em preto e branco levam mais pra esse campo da emoção do que da estética.

DA: Você participa do coletivo Afrotometria, que tem realizado ações no campo que vão desde exposições a mapeamento de fotógrafos/as/es negros/as/es. Como surgiu o coletivo? Poderia falar mais sobre?

TS: Afrotometria é outra escola pra mim. O coletivo surgiu depois de algumas reuniões de fotógrafos pretos, nos encontrávamos em pautas e decidimos nos relacionar para além disso. Com o passar do tempo, o grupo necessitou de uma formalização para realização de algumas atividades, então decidimos criar o coletivo de forma orgânica. Dessa forma despretensiosa nasceu o Afrotometria. Temos o Fotopreta, que é nosso projeto “carro-chefe”, uma exposição itinerante só com fotógrafos/as pretos/as. Até o momento, realizamos quatro edições da exposição, uma só com fotógrafos do eixo norte | nordeste. Paralelamente às exposições, realizamos debates com fotógrafos, curadores e outros profissionais do meio da arte. Uma das frentes mais interessantes do Afrotometria são as oficinas, realizamos ciclos de formação, desde técnica e teorias fotográficas, mas principalmente, o diferencial da nossa oficina é frisar a importância das pessoas pretas para a fotografia e arte no geral.

Atelier Mata Adentro, 2018, fotografia de Tiago Alexandre Santana. Cortesia do artista

DA: Como você observa a importância de grupos como o Afrotometria e de outros projetos que têm surgido para alavancar os debates sobre uma produção fotográfica mais plural e diversificada no país?

TS: Projetos como o Projeto Afro, Afrotometria, Fotógrafas Negras, entre outros, são de suma importância para o registro de memórias das pessoas pretas, como artistas, mas principalmente como agentes que contribuem para a sociedade. Somos descendentes de um povo que chegou aqui da forma mais cruel possível, fomos precificados, e vivemos num grande loop de um genocídio em diversas formas. Independente de qual meio, é importante, enquanto pessoas pretas (não só como “artistas”) deixarmos registrados nossas impressões e feitos nesse tempo em que vivemos. Quantas histórias dos nossos já não se perderam? Com as ferramentas que temos hoje em dia, acredito no dever de contribuir como pudermos. O povo preto é o alicerce da sociedade e merece ser valorizado como tal, e isso começa pela gente mesmo, no respeito por quem pavimentou a estrada que caminhamos hoje. Como é dito, nossos passos vêm de longe, enquanto povo preto, percorremos um longo caminho e vamos adiante.

Funk Buia, Atelier Mata Adentro, fotografia de Tiago Alexandre Santana. Cortesia do artista