O que é melhor, a gente discutir acordos políticos ou a cor dos políticos?, 2020, de Elian Almeida. Foto: Divulgação

CONVERSA COM ARTISTA: ELIAN ALMEIDA E A PERFORMATIVIDADE DO CORPO NEGRO

por Deri Andrade

24 de setembro de 2020

O que é melhor, a gente discutir acordos políticos ou a cor dos políticos?, 2020, de Elian Almeida. Foto: Divulgação

O jovem artista Elian Almeida vem trilhando uma carreira que merece destaque no cenário contemporâneo das artes. Natural de Duque de Caxias (RJ), Almeida vive e trabalha atualmente em Paris, onde cursa Cinema e Audiovisual no departamento Arts e médias da Université Sorbonne Nouvelle – Paris 3. Com obras que já fazem parte de coleções privadas e públicas, tem participado também de exposições no Brasil e na Europa. Conversamos com o artista pouco antes da abertura da mostra “Amanhã há de ser outro dia”, em cartaz no Studio Iván Argote em Paris, na qual participa ao lado de artistas brasileiros/as/es que também vivem na França. Na entrevista para o Projeto Afro, Elian Almeida fala, entre outros temas, sobre sua história, como se iniciou nas artes e das pesquisas que desenvolve a partir de um “fazer estético como exercício de reflexão para as problemáticas da nossa realidade contemporânea”.

O artista Elian Almeida durante abertura da exposição “Amanhã há de ser outro dia” no Studio Iván Argote em Paris. Foto: Divulgação

Deri Andrade (Projeto Afro): Apesar de uma jovem trajetória, você já tem importantes exposições no currículo, além de obras em coleções públicas e privadas. Poderia contar um pouco da sua história e carreira como artista?

Elian Almeida: Eu acho interessante fazer esse exercício de pensar a construção da minha história e carreira como artista. Eu digo isso, principalmente, quando parte da minha ainda curta trajetória foi marcada por um processo constante de reafirmação de uma certa legitimidade em se tornar um ‘’ser estético’’. É difícil o movimento de autoafirmação e a tomada de consciência dos lugares que você pode ocupar, quando você vem de onde eu vim e tendo a cor de pele que eu tenho, e o que tudo isso abarca. Apesar de não ter crescido em uma família com todos hábitos envoltos ao universo tradicional da arte, quero dizer, a realidade baseada em privilégios, onde você visita museus com uma certa constância, cresce com dezenas de catálogos de artes em casa, sabe desde pequeno quem é o Hélio Oiticica e tem diversas outras referências. Eu sempre fui muito observador e questionador, acredito que meu ser estético e político nasceu de um estado de curiosidade, observação e um certo desejo de ser protagonista de alguma coisa.

Comecei a desenhar ainda muito novo, porque a minha irmã desenhava muito bem. E esse estado de observação e curiosidade fez com que eu acompanhasse naturalmente aquele movimento. Sempre fui interessado pelo universo das artes visuais, eu ia ao teatro nos passeios da escola, mas já no fim do ensino médio eu ainda não tinha certeza do que eu queria ‘’ser quando crescer’’. Pensei em fazer arquitetura, comunicação social ou história. Gostava de escrever. Gostava de ler e falar sobre política. Então fui ponderando, mas a ideia de fazer uma coisa só me assustava, porque eu não tinha certeza do que eu queria, mas queria fazer tudo ao mesmo tempo. Tocava violão, contra-baixo e quando novo meu pai me colocou pra estudar teclado. Acho que tudo isso refletiu nesse momento presente. Então fiz o vestibular para o curso de Artes Visuais no Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), pois a grade curricular tinha um vasto campo de atuação: dança, teatro, pintura, escultura, música… Eu imaginava naquela época que, com essas inúmeras linguagens no mesmo curso, eu poderia, de alguma maneira, condensar tudo que eu gostava e fazer algum tipo de escolha mais pra frente, trabalhar com publicidade, com teatro.

Bom, fui aprovado no curso de Artes Visuais, estudei com grandes artistas, intelectuais e acadêmicos, acho que meu curso foi fundamental nesse processo de tomada de consciência do que é um artista visual e do que é a arte contemporânea, como eu me coloco, o que é o sistema de arte e seus cânones. Comecei a estagiar no Museu de Arte do Rio (MAR) como educador. Trabalhei por 3 anos lá, pesquisei e criei, aprendi bastante, foi a minha segunda faculdade. Comecei a fazer exposições já no segundo período da faculdade. Eu sempre tive muito apoio da minha família em cada escolha que eu fiz, mas não era fácil explicar pro meu irmão ou pra minha mãe que aquilo que eu fazia poderia de fato ser a minha profissão. Negro, da baixada fluminense, sendo artista plástico? Essa construção racista que foi sendo moldada secularmente no Brasil faz com que você acredite que negros não podem ser artistas plásticos, detentores de saber, intelectuais e protagonistas, porque tentaram apagar todas as nossas referências intelectuais e artísticas, fazendo com que esse processo de autoafirmação se tornasse uma grande ideia abstrata, distante de uma realidade palpável para negros e negras. Bom, acredito que é um ato político fazer as escolhas que eu fiz. Agora eu tenho obras em importantes coleções, isso é algo gigante e representativo, principalmente quando você cresce onde eu cresci.

Les Sussex (La Famille Royale), 2020, de Elian Almeida. Acrílico e óleo sobre tela, 102 x 100 cm. Coleção Ana Cecilia Impellizieri Martins/Paris. Foto: Divulgação

DA: Na sua obra, você nos propõe um exame das questões sociais, principalmente sobre o corpo negro e suas relações com a sociedade contemporânea. Poderia falar um pouco do seu trabalho e suas pesquisas?

EA: Interessa-me como pesquisa pensar no fazer estético como exercício de reflexão para as problemáticas da nossa realidade contemporânea. Mas, ligado diretamente a esse escopo está o recorte racial. É um movimento natural de examinar algumas dessas relações que me são caras. A minha cor. Meu estatuto social e como ele se relaciona em sociedade. A alteridade. Com isso, a minha produção é marcada pelo intento de friccionar determinados temas, como deslocar e ressignificar a ideia de uma performatividade social do corpo negro, a violência do Estado, a decolonialidade que ainda são, mesmo com décadas de discussões, questões pertinentes e urgentes, principalmente ao Brasil contemporâneo.

O estado de pesquisa e trabalho vai para além do ateliê. É um exercício diário de observação e inquietação que atravessam as minhas relações sociais com o meu corpo para com a sociedade no cotidiano. Depois desse exercício, nasce a possibilidade de criação, seja de uma pintura ou uma instalação. O corpo negro em perfomatividade na sociedade antecede a criação do meu trabalho. Mas, entendo o observar desse corpo como parte essencial de exercícios que resultarão em questões que serão trabalhadas de inúmeras maneiras e em diferentes mídias. É um estado de observação das relações de atrito dentro das esferas estético-políticas. Um trabalho baseado em métodos.

Agora, tenho trabalhado e me debruçado na minha série nova, que se chama: ”Digo gente com casa própria, com empresa própria, com nome próprio e traje apropriado.’’ Essa frase foi apropriada por mim de uma música do Djonga e, a partir dela, meu desejo principal é de examinar, suscitar reflexões e questionamentos sobre o contrato racial. Sobre a ideia de um estatuto social que pode porventura determinar comportamentos de um indivíduo em sociedade, mas falo aqui de grupos específicos e o intento de ressignificar os papéis, as performances sociais designadas secularmente a um determinado indivíduo ou para um determinado grupo de pessoas. Digo aqui, gente com casa própria, com empresa própria, com nome próprio e traje apropriado. Quem tem o direito a casa própria? Quem carrega um nome próprio? Quem carrega esses sentidos em um Brasil de contratos e relações com bases ainda coloniais?

La Noire De… (Le Monde), 2020, de Elian Almeida. Acrílico e óleo sobre tela, 46 x 38 cm. Coleção MdM Guinle Art Advisory/Paris. Foto: Divulgação

Em um dos meus momentos trabalhando no estúdio, fiquei pensando em possíveis papéis sociais que foram construídos e designados aos negros e negras dentro desse contrato estabelecido entre os brancos, entendendo o racismo como ponto central de dominação por esses grupos em um sistema social e político. Acabei visualizando, na mesma semana e nas semanas subsequentes, quatro casos similares dessas ações, dessas performances sociais. E, em todos os três fatos ocorridos, há uma similaridade performática entre os indivíduos. O primeiro fato, que teve uma certa notoriedade, foi o do empresário de Alphaville, Ivan Storel, um homem branco, onde o mesmo aparece em vídeo fazendo ofensas a policiais militares que foram apurar uma denúncia de violência doméstica feita por sua esposa. As frases proferidas por ele foram essenciais para pensar e corrobora a minha pesquisa: ‘’Aqui é Alphaville’’. ‘’Não pisa na minha calçada’’, ‘’não pisa na minha rua’’. A tranquilidade do agressor e a passividade dos agredidos, sobretudo, por serem policiais militares, é chocante, mas não é surpresa. Essas performances, só são possíveis dentro dessa dimensão que eu justamente venho questionar com essa série. O empresário tem um nome próprio, uma empresa própria e, com isso tudo, uma série de privilégios preestabelecidos e com bases sólidas. É o uso da supremacia branca como instrumento de dominação do sistema social e político.

Analiso também os casos de violência policial em abordagens contra indivíduos negros de periferia. Qualquer questionamento realizado por um homem negro a um policial militar em curso de uma abordagem tem um efeito totalmente oposto àquela passividade dos agentes que podemos observar no vídeo. Em um intervalo de tempo não tão curto, houve outros casos, como o do desembargador que humilhou agentes de segurança pública ao ser abordado por não estar utilizando sua máscara em um período de uma grave pandemia. A similaridade dos fatos e dessas ações é um dos pontos que me interessa para trabalhar nessa nova série e continuar pensando nos temas que abordei aqui em meus processos de pesquisa. Não é somente um trabalho de um artista negro analisando as ações político-sociais do corpo negro na sociedade contemporânea, mas um trabalho de um artista negro suscitando e friccionando essas relações entre os indivíduos e grupos com privilégios e anseios de dominação, ou seja, os não negros.

DA: Neste mês de setembro, inaugurou em Paris a exposição “Amanhã há de ser outro dia”, na qual você participa ao lado de outros/as/es artistas brasileiros/as/es que também vivem na França. Como foi sua mudança para o país? Como tem sido estudar e produzir fora do Brasil?

EA: Acho que a minha mudança foi importante para entender meu lugar como ser estético, como artista, sabe? Porque para você desenvolver sua pesquisa e seus processos com atenção, você precisa reconhecer esse lugar profissionalmente. O ofício do artista plástico exige tempo de reflexão intelectual e produção prática constante, até mesmo para descobrir novas possibilidades. E, após os primeiros meses me estabelecendo e estudando aqui, foi possível ir criando esses espaços. Estamos falando de um país onde a arte e a cultura são de extrema importância, isso facilita de alguma maneira. Observar essa mudança de país me faz pensar e repensar meus próprios processos. Esse olhar de fora faz com que a pesquisa ganhe outros sentidos. Porque você começa a observar de maneira crítica as disparidades, os outros contornos, sejam eles sociais e econômicos, sobretudo os hábitos culturais. Sair do Brasil me faz reafirmar cada vez mais a potência dos artistas e intelectuais brasileiros. Óbvio que existem os abismos, não somente separados pela dimensão física, mas também os abismos em discussões de determinados temas que estão distantes de ser importantes aqui no velho continente. Eu fico mais atento às novas relações de um homem afro-brasileiro em um país europeu, com bases socialmente diferentes do Brasil. Logo, a produção, a pesquisa, ganha uma outra dimensão.

Algo importante para mim, estando aqui, é continuar com total ligação com as instituições e agentes do Brasil. Continuar trabalhando com essas novas questões que me atravessam agora, mas continuar com um olhar atento paras antigas relações, sejam elas estéticas ou políticas.

Vista da exposição “Amanhã há de ser outro dia” no Studio Iván Argote em Paris, com obra O que é melhor, a gente discutir acordos políticos ou a cor dos políticos?, 2020, de Elian Almeida, ao fundo na parede. Foto: Divulgação

DA: No trabalho A arte contemporânea é negra?, observamos um questionamento pertinente aos nossos dias atuais. Como você tem acompanhado a produção contemporânea de autoria negra no Brasil?

EA: A produção afro-brasileira e indígena é protagonista de uma nova historiografia do Brasil. Porque é isso que estamos fazendo, criando contranarrativas, ocupando espaços e reivindicando também a participação no mercado. Não é mais sobre ser mero espectador ou objeto de pesquisa de artistas e acadêmicos não negros, mas é sobre ser agente ativo dessas relações. Somos jovens artistas que reconhecem e carregam a importância da produção que veio antes da nossa, como Abdias Nascimento, Heitor dos Prazeres, Dalton Paula, Rosana Paulino, Jaime Lauriano e muitos outros que abriram os caminhos e ainda estão produzindo para assentar o nosso movimento. Existe um grande movimento acontecendo na arte contemporânea brasileira, ele vem forte e com bases nas produções de artistas, intelectuais, pesquisadores e acadêmicos negras e negros. O exemplo disso é o próprio Projeto Afro e, recentemente, o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-Rio) ter como um dos diretores artísticos a curadora Keyna Eleison. Esses eram lugares ainda muito distantes para negras e negros, mas agora ganham novos contornos. Não só por estar contribuindo para esse momento, mas acho que é nítido meu entusiasmo para o que estamos fazendo e o que ainda vamos fazer. Porque é isso, A Arte contemporânea é negra.

A Arte Contemporânea é Negra?, de Elian Almeida. Foto: Divulgação

DA: De que forma tem acompanhado, também, as questões políticas no Brasil, com os atuais governantes no poder?

EA: Tenho acompanhado com muita angústia e tristeza. O Brasil, historicamente, sempre foi palco turbulento no quesito política. Mas, pelo menos para mim, era impensável vislumbrar quatro ou cinco anos atrás um cenário catastrófico como o que estamos vivendo agora. Sempre fui muito otimista de uma certa maneira, agora estou mais pragmático, entende? Muito me perturba, o nosso sentimento de apatia coletiva. Há poucas ações de contra resposta, não é que não tenham pessoas engajadas, mas esse desejo romântico de resistência e continuar resistindo é muito cansativo. O embate tem que ser mais direto, estamos falando de um governo genocida e de representantes com aspirações a psicopatia. Um governo assumidamente racista, que utiliza-se do potencial pandêmico, como um dos meios de decidir quem vai ou morrer ou quem vai viver, é a necropolítica. Acho que devemos abandonar os velhos acordos e os antigos modus operandi estabelecidos pela clássica política do Brasil, especialmente as dos setores mais progressistas. É fazer uma autocrítica e começar um trabalho de base onde o diálogo nunca chegou de maneira permanente e democrática. Pensar um novo Brasil é urgente e a arte tem um papel fundamental nesse processo.

Porte Ilegal de artefato incendiário (“Democracia Racial”) – Pinho Sol, 2018, de Elian Almeida. Páginas destacadas constam os direitos fundamentais. Foto: Divulgação