Servente, 2020. Técnica mista sobre madeira, 112 x 142 cm. Créditos da imagem: Lucas Pires. A obra pode ser baixada como fundo de tela no app "Projeto Afro - Além da Tela".

CONVERSA COM ARTISTA: RAMO

por Deri Andrade

27 de janeiro de 2022

Servente, 2020. Técnica mista sobre madeira, 112 x 142 cm. Créditos da imagem: Lucas Pires. A obra pode ser baixada como fundo de tela no app "Projeto Afro - Além da Tela".

Com duas exposições em cartaz, simultaneamente em São Paulo, “#VILÃO”, e São Caetano, “ORÍ”, Ramo apresenta parte da sua pesquisa desenvolvida em torno do verbo construir. Partindo de processos identitários que surgem na sua produção de coletas de memórias e seus fragmentos, sua prática usa da bricolagem para pensar e materializar a obra-objeto. Graduado em Artes Plásticas e especializado em Gestão Cultural Contemporânea, tem no exercício da arte-educação um denominador comum para toda sua atuação. O artista, que também participa do aplicativo “Projeto Afro – Além da Tela”, que pode ser baixado aqui, fala nessa entrevista sobre seus processos criativos, a relação com a rua e o conceito das novas exposições.

Vyni, 2021. Pintura, na exposição “#VILÃO”, em cartaz na Diáspora Galeria, em São Paulo, com curadoria Lorraine Mendes. Foto: Divulgação

Deri Andrade (Projeto Afro): Como surgiu o seu interesse pela arte? Poderia nos contar um pouco da sua trajetória e como se iniciou no campo?

Ramo: Acredito que o meu interesse pela imagem brote de gerações anteriores a mim, que não puderam performar em vida o que compreendemos como o ofício de artista. Penso que, hoje, todas essas possibilidades, desejos, reflexões e atuações no que chamamos de liberdade, mesmo em um país anti-pretos/indígenas e outres, são hackeadas por minha geração com ferramentas ora digitais, ora analógicas, gingando elegantemente em meio às fissuras das contradições de ser afrodiaspórico em um ocidente necropolítico.

As imagens sempre foram força motriz para fluir entre essas contradições e dialogar com outras pessoas desde muito pequeno. Enveredar na carreira artística é apenas manter a coerência na leitura e modos de atuar no mundo.

DA: É interessante notar como suas vivências passam pelo campo da formação em artes e a prática em ateliê de artistas. Pode comentar sobre essas experiências?

R: A prática em ateliê de artista é um fenômeno muito recente, assim como a maioria dos artistas das margens, não temos direito ao espaço de trabalho intelectualizado, como por exemplo o fazer artístico para formalizar e potencializar o ofício que escolhemos para o presente. Logicamente, estou me referindo estritamente à estrutura física do possível estúdio, ou seja, um espaço “livre” para produção de um ateliê, seja em meu próprio lar ou como residente em alguma instituição, ou até alugando um espaço fora de casa para produzir minha pesquisa.

O meu quarteliê é uma conquista majoritariamente construída na pandemia, mas que ecoa em minha produção e pesquisa desde a adolescência. Porém, a RUA sempre foi espaço de acolhimento para construção imagética, performática e relacional que desenvolvo, somada às derivas (Vadiagens Estéticas), na época praticadas inconscientemente há mais de 10 anos, mesmo estando totalmente à mercê da violências praticadas por vários setores do estado brasileiro, sejam elas nas ações policiais e seus “enquadros” truculentos ou o acesso sempre restritivo ao espaço de pesquisa, como bibliotecas públicas de Mauá que frequentei periodicamente nos anos 1990, e/ou mesmo os antigos telecentros públicos nos anos 2000, frente também ao capital de giro, ainda restrito, para compra de materiais, investimento em novas produções e projetos experimentais, são essas algumas ferramentas de bloqueio que driblo, desde o começo, em minha produção.

Ex-voto 7. Cerâmica, na exposição “#VILÃO”, em cartaz na Diáspora Galeria, em São Paulo. Foto: Divulgação

DA: E sua experiência como arte-educador, de que forma essa prática se desdobra no seu fazer artístico?

R: No meu fazer não há mais linhas divisórias entre educação, arte, arte-educação, afeto, cultura, diálogo e seus sensos e seus dissensos.

Meu objetivo maior é romper essas nomenclaturas e aprofundar este diálogo especialmente, com quem teve a beleza roubada de suas vidas, nos processos de aculturação produzidos pelo ocidente.

Creio e trabalho assim como Theaster Gates para que “a beleza seja um serviço público” acessível para todos, especialmente para os que sempre são barrados simbolicamente/fisicamente de espaços de construção de saber como galerias, museus, centros culturais e afins. Luto para aglutinar, em tempo real com os nossos espaços de construção de saber, o barracão das escolas de samba, as rodas de capoeiras, os jongos, os bailes de samba rock, os fluxos, os frevos, os sambas de bumbo, as rodas de rimas, cyphers e as conversas de botecos e o sagrado café com as/os/es mais velhas/os/es.

DA: Você cita que seu trabalho lida com técnicas e materiais comuns à construção civil. Em torno do verbo “construir”, esses “processos identitários” surgem de que forma na sua produção?

R: Normalmente, esses processos identitários surgem a partir do momento que coloco “para jogo” esse legado em minha produção, algo que para mim é extremamente profundo e poético no histórico dos meus pais (Elenice e Wagner) e dos meus avós maternos (Eunice e Jeremias) e paternos (Yonice e Walter). Quando fundo o que entendemos como obra de arte, junto o que compreendemos como obra de construção civil, crio uma estética/estética a partir da bricolagem, das coletas de memórias e seus fragmentos, e os reconfiguro em um mosaico conceitual como um piso de cerâmica feito de caquinhos de azulejos do jardim da minha avó. Além de cooptar os materiais utilizado em ambos os ofícios, podendo, assim, recriar mundos e significações únicas, a meu ver, em minha pesquisa.

Deslocamento, 2018, 26 x 21. Na exposição “ORÍ”, com curadoria de Lorraine Mendes. Foto: Divulgação

DA: Sua obra parte de pesquisas que desenvolve em diferentes suportes enquanto concepções de construção dos espaços sociais, como pode ser visto na sua exposição individual “Orí” no Sesc São Caetano. Poderia falar mais sobre a mostra?

R: “ORÍ é hORÍzonte dA MARGEM que propõem novos centros, discutindo a cidade na fresta do censo e dissenso.”

A afirmação acima resume a energia que guia o desenvolvimento da exposição, onde não só as peças ali apresentadas formam ORÍ, como as materializam em conjunto com ações relacionais que refletem este exercício de solitude entre Covid-19 e a retomada pós-pandêmica.

Ações como caminhadas (Vadiagens Estéticas) + visitas mediadas com artista, rodas de conversa com a curadora Lorraine Mendes, que constrói em conjunto este projeto, falas e trocas com artistas convidados/es/as para dialogarem com o trabalho são algumas das possibilidades trazidas para essa programação expandida com a unidade de São Caetano

DA: A exposição se desdobra como uma experiência de site specific, e boa parte do seu trabalho é concebido para uma interação com o público. Como esses dois eixos se cruzam na mostra?

R: Na mostra, existe a possibilidade de dialogar com um público que retorna há uma normalidade em meio a pandemia, desejoso por experiências relacionais, em um território em disputa narrativa no grande ABC.

Todos os itens são projetados para aprofundar os temas trabalhados e são atravessados por uma nova pesquisa sobre masculinidades pretas/faveladas em meio ao exercício de solitude ou experiências semelhantes ao cárcere privado  quarentena, estando se resguardando ou lutando na base da pirâmide econômica.

Itens expográficos, como paleta de cores, as técnicas trabalhadas em especial as cerâmicas (Ex-Votos) que são muito simbólicas para Mauá e região, materializam a vulnerabilidade de nós indivíduos afro/periféricos e nosso desejo de solucionar o “mal do século” do contemporâneo, como ansiedade, depressão, überização do trabalho e outros males.

A Instalação “111” reflete sobre precária relação da pessoa preta/favela frente ao judiciário brasileiro e suas forças de vigilância/controle, as polícias militares, municipais e afins e os hospitais psiquiátricos e as escolas públicas, que normatizam a brutalidade na tenra infância do jovem afro e/ou periférico. Toda a exposição potencializa a construção deste espaço/templo dentro da unidade São Caetano, gestando essas e outras ativações desenvolvidas entre o período da exposição de dezembro de 2021 e 31 de março 2022, em uma programação expandida com intensa colaboração com o público visitante da unidade, ora presencial, ora virtual.

Afeto, 2019. Objeto. Técnica mista em madeira de demolição. Em cartaz na exposição “ORÍ”. Foto: Divulgação

DA: Você está com outra mostra em cartaz em São Paulo, na Diáspora Galeria, chamada “#VILÃO”. Poderia comentar sobre o conceito da exposição?

R: Se fosse para sintetizar o conceito-chave da exposição #VILÃO, seria um provérbio dito pelo mestre Gildásio em um dos últimos treinos de capoeira que participei, ele disse: “Na capoeira, passo para trás também é golpe”.

Esse provérbio foi um mantra para a construção das obras da mostra e uma fagulha para pesquisar como os povos amefricanos lidaram com pandemias, normalmente trazidas por europeus ou seu filhes para o Brasil.

Comecei a produzir obras que refletissem sobre este arquétipo, gerando um mapa comportamental/filosófico deste modo de viver e ler o mundo.

O arquétipo tem sido cada vez mais ressignificado pelos próprios agentes da cultura, já que o ato de “vilanizar” o não branco surge como ferramenta de controle de corpos e mentes, certificado de validação da execução pela sociedade e uma ultra marginalização de sua episteme, que tem gerado uma atração, mesmo que parcial ou branqueada de partes, da construção cultural feita desde a chegada das várias Áfricas aqui.