Sidney Amaral (São Paulo, SP, 1973 – 2017), Gargalheira (quem falará por nós?), 2014. Foto: reprodução

UM MAPEAMENTO, MUITAS INQUIETAÇÕES

por Deri Andrade

21 de junho de 2020

Sidney Amaral (São Paulo, SP, 1973 – 2017), Gargalheira (quem falará por nós?), 2014. Foto: reprodução

“Ser artista acho que já é difícil, ser artista negro no Brasil é ainda um pouco mais complicado”.

O artista Sidney Amaral (São Paulo, SP, 1973 – 2017) proferiu a frase acima em 2016 quando foi entrevistado pelo projeto AfroTranscendence. Desde então, esse pensamento acompanha-me. Ao longo dos últimos três anos, quando iniciei, em 2017, as pesquisas na especialização em Cultura, Educação e Relações Étnico-raciais no CELACC – Centro de Estudos Latino Americanos sobre Cultura e Comunicação da USP, dedico parte do meu tempo a conhecer e investigar a produção artística de autoria negra no Brasil. Com a finalidade de fazer um mapeamento que contemple o conjunto desses processos criativos, não em números, mas em diversidade, imergi em catálogos de mostras antológicas que auxiliaram na construção do conceito dinâmico de arte afro-brasileira, em livros que buscam examiná-lo, em artigos e dissertações acadêmicas sobre o tema, em conversas com artistas e pensadores negros, em cursos livres.

Deri Andrade. Foto: acervo pessoal

As pesquisas para o Projeto Afro, oficialmente articuladas com uma agenda de estudos na especialização, fez com que o mesmo fosse guiado por uma única mão, mas pautado em muitas cabeças pensantes que estiveram comigo durante o processo. O fato de seu lançamento estar amparado por textos e entrevistas com outros agentes diz muito sobre a nova fase que se pretende ser coletiva. Conhecer esses trabalhos e histórias de vida é uma tarefa intensa, sistemática e metodológica. Entretanto, este projeto tem origem antes do curso, tendo continuado, inclusive, mesmo com a conclusão da especialização em 2019.

Compreendida como a primeira etapa de um processo ainda em curso, essa imersão inicial não foi o bastante para a inquietação que persistia. Em 2019, consequentemente, planejei e divulguei, por meio das redes sociais do Projeto Afro, uma chamada aberta para recebimento de portfólios de artistas (ainda vigente), por entender esses suportes como ferramentas de narrativas também em construção. Analisar os 157 arquivos recebidos fez-me perceber que o conceito, em si, deste projeto, já não dava conta do que se pretendia.

Mapear, em significado puro, é representar em mapa. Entretanto, como mapear artistas negros/as/es em um território como o Brasil? Como investigar uma produção que perpassa as linhas cartográficas que cortam o país? Entendo as transversalidades, os deslocamentos e as dispersões enquanto partes integrantes de um processo histórico expandido de forças e tensões. Nesse contexto, percebo um movimento em constante trânsito pela reafirmação de sua própria singularidade.

Assim, passei a enxergar uma outra noção de mapeamento. Para além dos limites territoriais, o Projeto Afro busca abranger a produção negra a partir de uma investigação de seus aspectos, de seus questionamentos, na incorporação de temas e discursos, muitos deles sociais e políticos, que configuram uma produção plástica para os mais diversos níveis de pluralidade e complexidade.

Jaime Lauriano (São Paulo, SP, 1985), Brasil: invasão, etnocídio, democracia racial e apropriação cultural, 2016. Desenho feito com pemba branca (giz utilizado em rituais de Umbanda) e lápis dermatográfico sobre algodão preto, 119 x 156 cm. Foto: Filipe Berndt/reprodução site do artista

O envio de um formulário preliminar, em resposta aos artistas que compartilharam seus portfólios, também auxiliou na organização dos dados levantados. Delimitei, portanto, a verificação desses portfólios recebidos como a segunda etapa da pesquisa, que se cruza com a primeira. Esses documentos foram/são importantes instrumentos que me transportam a locais possíveis apenas via meios digitais.

Ainda assim, no percurso, outras inquietações surgiam. Por que mapear artistas negros/as/es? Em 2017, a MUNA – Mulheres Negras nas Artes realizou um mapeamento sobre a presença de artistas negras nas cinco principais galerias de arte comerciais do sudeste brasileiro. No resultado, o coletivo identificou que dos 160 artistas representados por esses espaços, 56 eram mulheres, sendo apenas uma delas artista negra. Pouco antes, em 2015, o manifesto A Presença Negra, idealizado pelos artistas Moisés Patrício e Peter de Brito, propunha uma “ação pacífica e alegre”, na qual subvertia alguns estereótipos quando preenchia os espaços gélidos e pálidos de galerias e museus na capital paulista com a ocupação de pessoas negras em vernissages e exposições de arte.

A tentativa de romper barreiras seguiu com a realização de eventos, debates, encontros propositivos em que pensadores negros eram (e são) os proponentes e os interlocutores de importantes falas sobre racismo, homofobia, questões de gênero e discussões sobre arte afro-brasileira. Apenas para citar alguns, tem-se conhecimento da realização de atividades em diversas regiões do país. Em pelo menos cinco anos, as ações surgem em paralelo à conceituação de lugar de fala tão defendido por Djamila Ribeiro.

No mesmo fluxo, instituições culturais abriam um calendário de proposições gradativas, no que Alecsandra M. de Oliveira adverte para uma “onda negra”. Em busca de legitimação e circulação dessa produção artística, alguns museus brasileiros realizaram mostras que, na sequência, estamparam as páginas de jornais, sites, redes sociais, com o recebimento de prêmios internacionais e elogios da crítica especializada. A exemplo de São Paulo, elenco abaixo algumas.

A Pinacoteca de São Paulo realizou, entre 2015 e 2016, a exposição “Territórios: Artistas Afrodescendentes no Acervo da Pinacoteca”, na qual revisitou seu próprio acervo e apresentou obras de artistas negros em núcleos temáticos desde as matrizes europeias até a contemporaneidade. A curadoria foi do então diretor Tadeu Chiarelli. Um Seminário, organizado pelo museu e pela revista O Menelick 2º Ato, ampliou as discussões com a participação de artistas e pesquisadores que articularam seus pensamentos em torno da exposição.

Exposição “Territórios: Artistas Afrodescendentes no Acervo da Pinacoteca” (2015-2016), Pinacoteca do Estado de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. Foto: Isabella Matheus

A exposição “Agora somos todxs negrxs?”, no Galpão VideoBrasil, em São Paulo, deu início ao calendário do segundo semestre de 2017 exibindo “uma arte contemporânea produzida a partir da perspectiva da negritude que desafia as perspectivas de descolonização da América”, segundo o artista, pesquisador e curador da mostra Daniel Lima. Inspirada na revolução haitiana, levante negro que deu origem à independência do Haiti e tornou-se um marco da resistência negra frente aos regimes coloniais, a exposição questionava as investidas desses próprios órgãos culturais em “temas emergenciais” que não se efetivaram em mudanças nas estruturas racistas em que os mesmos foram alicerçados.

Em 2018, no MASP – Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand e no Instituto Tomie Ohtake, também em São Paulo, o público de 180 mil e 138 mil visitantes, respectivamente, conheceram as “Histórias Afro-atlânticas”, título da mostra que apresentou cerca de 400 obras de mais de 200 artistas, entre negros e brancos. A curadoria ficou a cargo de Adriano Pedrosa, Ayrson Heráclito, Hélio Menezes, Lilia Moritz Schwarcz e Tomás Toledo.

Em recente artigo publicado no site do jornal da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o artista e professor da mesma instituição Rommulo Vieira Conceição expôs a ausência de artistas negros nas coleções das principais instituições do país. Segundo ele, a referida Pinacoteca, depois do Museu Afro Brasil, é “o museu paulista com a maior presença de artistas afrodescendentes em seu acervo”. Convém ressaltar que, o MASP, ao finalizar a mostra “Histórias Afro-atlânticas”, recebeu 20 obras de 18 artistas afrodescendentes para sua coleção, passando a exibi-las no acervo permanente.

No cenário carioca, por sua vez, o Museu de Arte do Rio toma partido e realiza uma série de exposições com a presença de mais artistas negros. Em 2019, a coletiva “O Rio dos Navegantes” e a individual “Pardo é Papel”, de Maxwell Alexandre, ocuparam as salas expositivas da instituição. No começo deste ano, “Rua!”, coletiva com nomes negros em sua lista, e “UóHol”, de Rafael Bqueer, foram inauguradas. Ainda sem nova data de estreia, a mostra “Aline Motta: memória, viagem e água” está programada para acontecer no mesmo museu. Atravessando a Baía de Guanabara, o Museu de Arte Contemporânea de Niterói realizou, em 2019, “Abdias do Nascimento – Espírito Libertador”, em articulação com o Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (IPEAFRO), sendo a primeira em um museu dedicada a Abdias.

Para além de expor e adquirir essas obras, Fabiana Lopes analisa em seus escritos, publicados no catálogo de “Territórios”, a importância da desconstrução da narrativa ocidental que insiste categorizar a produção negra em: regional, secundária ou local. Para a autora, a mudança de chave dá-se, portanto, quando enxergarmos as contranarrativas dessa produção pela complexidade de estruturas que passam pela questão da subjetividade desses sujeitos, detentores de conhecimento e produtores intelectuais.

O breve panorama dos últimos anos reflete uma sintaxe institucional que teria percebido, finalmente, as falácias da democracia racial? A resposta, parece-me, veio com importantes iniciativas independentes que insurgiram, antes e durante esses desdobramentos, na busca pela descolonização do olhar da produção negra. Cito aqui novamente O Menelick 2° Ato, AfroTranscendence e MUNA, Projeto Dúdus, segundaPRETA, Nacional Trovoa e tantos outros, que antecedem ao Projeto Afro e abrem os caminhos para esta e para as próximas ações que virão.

O Menelick 2º Ato. Foto: reprodução

A partir desses pontos de vista, este mapeamento foi realizado na vontade de apresentar e discutir a vasta produção que permeia processos históricos e movimentos artísticos, acompanhando suas transformações. Na tentativa de desconcentrar igualmente nosso olhar do eixo Rio-São Paulo, temos cadastrados até aqui 135 artistas que nasceram, vivem e trabalham nos estados de: Alagoas (AL), Amapá (AP), Amazonas (AM), Bahia (BA), Ceará (CE), Distrito Federal (DF), Espírito Santo (ES), Goiás (GO), Maranhão (MA), Mato Grosso (MT), Minas Gerais (MG), Pará (PA), Paraíba (PB), Paraná (PR), Pernambuco (PE), Piauí (PI), Rio de Janeiro (RJ), Rio Grande do Norte (RN), Rio Grande do Sul (RS), Santa Catarina (SC), São Paulo (SP) e Sergipe (SE). Ainda não alcançados os estados do Acre (AC), Mato Grosso do Sul (MS), Rondônia (RO), Roraima (RR) e Tocantins (TO), não pela ausência de artistas negros/as/es nas regiões citadas, mas por entender que o mapeamento continua justamente para ir ao encontro desses novos territórios.

Os trabalhos que veremos nesta plataforma respondem às questões de natureza formal com pinturas, aquarelas, colagens, desenhos, esculturas, fotografias, grafites, gravuras, ilustrações, instalações, objetos, performances, vídeos, vídeo-performances e xilogravuras. Categorias que tecnicamente foram cadastradas neste banco de dados que é o projeto, completadas pelas décadas de nascimento dos/as/es artistas que marcam diversos períodos.

Faz-me perceber, revendo os números, a tamanha ousadia desta missão quando navegamos pelos perfis de artistas e nos deparamos com múltipla e heterogênea produção. As tentativas de respostas embutidas aqui nestas páginas não dão conta, por sua vez, dos encadeamentos propostos pela arte de autoria negra. Os novos léxicos se mostram possíveis de discussão profícua, ao ponto que esses autores são, em síntese, agentes da esfera social onde são sujeitos de si.

Organizar este conteúdo para que tenhamos mais insumos que nos possibilitem continuidade, foi/é um trabalho pungente, mas aprazível. A concepção desta plataforma, que vem sendo formatada há mais de 1 ano,  foi realizada enquanto espaço de troca, descoberta e ressignificação de símbolos, normas e perspectivas. O Projeto Afro surge como mecanismo outro de discussão sobre as abordagens citadas, até mesmo com o desejo de debater também a ascendente “onda negra”.

Longe de sistematizar ou categorizar a arte de autoria negra, assim como fora anteriormente quando chamada arte popular, primitiva, o que o projeto pretende é criar um espaço coletivo de experimentação. Para mim, mapeamento diz mais sobre a construção de um “organograma”, de uma sistematização de ideias e pensamentos, com linhas cruzadas de conhecimentos que nos possibilitam um repertório híbrido para pesquisa e referência.

O caminho percorrido não seria o mesmo sem estes nomes fundamentais para o trajeto, direta ou indiretamente. Lembro aqui de Jordana Leite, Vinicius Salomoni, Tulio Costa, Derivalda Andrade, Leonardo Fabri, Alex Tso, Olivia Bonan, Monique Cerchiari, Juliana Andrade, Lucas Barros, Roderico Souza, Paula Tinoco, Hélio Menezes, Alecsandra Matias de Oliveira, Yhuri Cruz, Ana Rosa da Silva, Derivaldo Andrade, Carollina Lauriano, Tiago Gualberto, Raylander Mártis dos Anjos, Claudinei Roberto da Silva, Luciara Ribeiro, João Turchi, Eduardo Biz, Dilma Melo e Silva, Leandro Muniz, Juliana dos Santos, Castiel Vitorino Brasileiro, Rodrigo Gonçalves (Gilbef).

Aproximo-me de encerrar esta reflexão/apresentação com Kabengele Munanga, referência máxima para mim e para a construção do Projeto Afro, que não nos deixa esquecer em seu texto seminal “Arte afro-brasileira: o que é, afinal?” (2000) dos atributos dessa arte negra, mencionando suas formas, estilos, cores, seu simbolismo, sua temática, as fontes de inspiração, iconografia, “todos harmoniosamente articulados através do domínio de uma técnica capaz de dar corpo e existência a uma obra de arte autêntica”.

Se ser artista negro no Brasil é complicado, num país sem lideranças “à altura” de ocupar os cargos máximos na Cultura e na Educação no atual governo, como não articular forças para a derrocada do racismo estrutural? O Projeto Afro tem o objetivo de ser parte integrante da retomada de vozes historicamente oprimidas e silenciadas, contra os epistemicídios, expandindo percursos de referencial.

Convido você a navegar pelas páginas desta plataforma e conhecer arte de autoria negra, ler textos e entrevistas que aqui serão publicados, ver os escritos acadêmicos sobre o tema e participar dos eventos sugeridos. Em tempo, a terceira etapa da pesquisa compreende visitas aos ateliês de artistas na cidade de São Paulo, mas devido ao atual momento, a atividade foi adiada; até o lançamento do site, mais portfólios foram recebidos e os mesmos serão estudados. A pesquisa continua.

Para acompanhar:

A “Onda Negra”: arte visual afro-brasileira, legitimação e circulação, de Alecsandra M. de Oliveira

Arte afro-brasileira: o que é, afinal?, de Kabengele Munanga

A Presença Negra – Manifesto, de O Menelick 2º Ato

Um ensaio sobre a presença de negros na academia, na ciência e nas artes, de Rommulo Vieira Conceição

Território silenciado, território minado: contranarrativas na produção de artistas afro-brasileiros contemporâneos, de Fabiana Lopes