Darby English. Foto: Reprodução Artnet/ cortesia do entrevistado

O HISTORIADOR DE ARTE DARBY ENGLISH [FALA] PORQUE UM NOVO RENASCIMENTO NEGRO PODE, NA VERDADE, REPRESENTAR UM RETROCESSO

por Folasade Ologundudu

5 de junho de 2023

Darby English. Foto: Reprodução Artnet/ cortesia do entrevistado

English é o autor de “Descrever uma vida” [To describe a life] e “Como ver um trabalho de arte na escuridão total” [How to see a work of art in total darkness]

Entrevista por Folasade Ologundudu
Publicado originalmente na Artnet em 26.01.2021
Tradução por Leandro Muniz, revisão de Liliane Benetti[1]

Nota da tradução

Se o título desta entrevista parece, a princípio, ir contra os urgentes debates em torno da representação, representatividade e inserção de agentes negros no campo da arte, ao longo da leitura é fácil perceber a crítica ética e metodológica que Darby English lança em relação à questão da generalização. Esse é um problema teórico que o autor identifica nos modos como os artistas passam a ser enquadrados, incorporados e discutidos, eventualmente internalizando esse modo de operar em suas próprias produções. Também há uma série de expectativas sobre o escopo discursivo sobre o qual artistas negros trabalhariam ou não e um apagamento das singularidades de linguagem de cada obra, o que se reflete em análises pouco complexas sobre o universo de elaboração dos próprios trabalhos e também em exposições, listas e apanhados que agrupam artistas racializados apenas por isso. Além desse diagnóstico, English sugere saídas críticas e propositivas em suas análises rentes à materialidade e à forma das obras, bem como seu interesse por “uma história da arte das exceções”.

Nascido em Cleveland, Ohio, em 1974, Darby English é professor na Universidade de Chicago no Departamento de Artes Visuais e no Centro de Estudos de Raça, Política e Cultura. Entre 2014 e 2020 foi curador-adjunto no departamento de pintura e escultura do Museu de Arte Moderna de Nova York. Entre seus livros, “1971: A year in the life of color”  [“1971: Um ano na vida da cor”] (University of Chicago, 2016) analisa duas exposições de “arte abstrata” produzida por artistas racializados e como esses projetos foram obliterados pela historiografia oficial, tanto no debate racial, quanto sobre a abstração. “To describe a life: Notes from the intersection of art and race terror” [“Descrever uma vida: Notas a partir da interseção entre arte e terror racial”] (Yale, 2019) aborda obras que problematizam, pela afirmação, negação ou proposição, a crescente violência policial contra a população negra nos Estados Unidos. “How to see a work of art in total darkness?” [“Como ver um trabalho de arte na escuridão total?”] (MIT, 2007) discute as generalizações criadas na análise da produção de artistas negros ao longo da história da arte norte-americana, especialmente a partir da segunda metade do século XX, com a ascensão de movimentos negros em diversas partes do país e seu impacto no campo artístico.

Essa discussão encontra um paralelo no Brasil, em especial na última década, com a proliferação de exposições que abordam a questão racial e a crescente emergência e participação de sujeitos racializados tanto como artistas, quanto em campos teóricos e curatoriais em instituições, no mercado de arte e outras áreas historicamente dominadas pelas classes médias e altas predominantemente brancas.

English trabalha com uma metodologia que consiste em investigar e desconstruir a fortuna crítica e teórica a respeito dos artistas, descrevendo minuciosamente suas obras, detendo-se na materialidade dos trabalhos, na busca por afastar expectativas ou conceitos prévios. Só então o autor conecta as obras aos contextos sociais, históricos e políticos de onde emergem, bem como suas consequências práticas e teóricas, sem perder de vista as especificidades da forma.

Postas as imensas diferenças institucionais e culturais entre o contexto estadunidense e o brasileiro -ainda que os resíduos da colonização e do passado escravocrata encontre seus ecos e conexões em quaisquer lugares que seja, como nos lembra Edouard Glissant -, exposições sobre a questão racial lá tiveram um papel importante de reinvindicação para a criação de instituições, universidades e programas voltados a agentes negros, mas logo mostraram seus limites: das gerações que reivindicavam inserção e visibilidade nos anos 1970 para aquela que se forma nos 1980, passando a se colocar publicamente nos 1990, questões como expectativa de performance, liberdade de expressão ou os limites conceituais e o pouco poder explicativo do que seria uma ‘cultura negra’ se tornam assuntos incontornáveis.

No caso brasileiro, é curioso o tom ‘inovador’, ‘inaugural’ ou ‘reparador’ de exposições desse tipo, que além de demonstrarem a amnésia histórica a respeito de uma série de ações análogas entre os anos 1960 e 1990 — das quais Abdias do Nascimento talvez seja o exemplo mais radical, reivindicando a permeabilidade entre ação política, práticas de pintura em ateliê, análises sociológicas e mobilizações coletivas — mostra a falta de mudança efetiva do problema: se temos que “inaugurar novamente” um debate é porque ele simplesmente não avançou. Em termos metodológicos, no entanto, a generalização é um ponto de contato entre diversas exposições e publicações no Brasil e nos Estados Unidos quando o assunto é a produção de artistas negros e as pressuposições sobre seu escopo discursivo e formal.

Aqui vale introduzir o conceito de “Black representational space” elaborado por English no livro “How to see a work of art in total darkness”, citado brevemente na entrevista. Em português, a expressão pode designar ora espaço representacional negro, no sentido de representações sobre esse grupo social, ora o espaço possível de representações do negro, indicando as possibilidades discursivas do sujeito.

[…] devo esclarecer as duas funções que atribuo ao espaço representacional negro nessa discussão. Em uma, ele designa um território cultural cujo resultado é a recompensa do sucesso que [Stuart] Hall identifica como a ‘luta sobre relações de representação’, o que quer dizer os meios de produção de ‘imagens negras’. Exemplos relevantes incluem os modos de avanços reais e materiais nas condições de vida de intelectuais negros que são essenciais para nossa sobrevivência política: posições profissionais, oportunidades de publicar, expor, debater publicamente etc. Mas há uma segunda função aparentemente necessária para manter, enriquecer e ampliar essas principais. Isso é o que busco questionar na base na qual esses territórios são frequentemente sobrecarregados por uma obrigação a velhas práticas discursivas e estruturas simbólicas que precisam ser atualizadas de tempos em tempos. A segunda função designa um terreno conceitual, delineado por normas filosóficas, dentro das quais a política de representação é ela mesma representada como se fosse por natureza um problema intracultural. Os limites desse terreno são ao mesmo tempo marcados e determinados por coisas como compêndios de trabalhos de artistas negros, ou relatos de pontos cruciais de divisão e colapso em debates sobre a exemplaridade ou a ‘positividade’ de certas representações, a aberração de outras, e a muito discutida ‘transcendência’ da raça por alguns. Esse constante policiamento do espaço representacional negro não apenas o preserva, mas o renaturaliza.[2]

O espaço representacional negro é um conjunto de normas implícitas e explícitas de ação, discurso e performance do artista racializado. English identifica sua naturalização como algo a ser criticado, tanto em termos práticos, artísticos, quanto teóricos e curatoriais, nos quais a generalização, além de ser um instrumento de manutenção do sistema racial, sem nem ao mesmo fazer sua crítica, muito menos dissolução, torna-se um problema metodológico grave tratando-se de arte, especialmente no caso de artistas racializados. Se um dos paradigmas máximos da experiência artística é a singularidade (da obra, do artista, da experiência) qualquer interpretação ou relação que se valha de categorias prévias, sem olhar as especificidades material-históricas das obras, ou as agrupe apenas pelo mínimo denominador comum dos artistas, que no caso seria a raça, não lida com rigor com o objeto artístico. No caso dos artistas racializados, a generalização seria uma espécie de “dupla violência”: pelo achatamento de suas criações e de suas próprias subjetividades.

Como toda tradução, há limites intrínsecos às diferentes línguas que não podem ser plenamente expressos. No entanto, no caso de termos em inglês que encontram alguma polissemia (um recurso bastante usado nos textos e nas falas do entrevistado) ou peso cultural específico, nestes serão indicados os originais entre colchetes. Alguns aspectos marcantes da cultura norte-americana e do estilo do entrevistado foram, por vezes, suprimidos, buscando a maior fluência e coerência do texto para o público brasileiro.

Ainda que, por vezes, dolorosos, os diagnósticos de English ao longo desta entrevista podem gerar ferramentas importantes para um debate ao mesmo tempo mais rigoroso e arejado, ancorado historicamente e experimental a respeito dos debates raciais no campo artístico e suas potenciais transformações políticas e epistemológicas. Além da descentralização do poder e da atenção sobre a supremacia branca, English desloca os modos interpretativos para outros agentes, não por uma busca essencialista do que seria a ‘cultura negra’ mais original e autêntica ou ainda de um passado sem fraturas, mas como uma atenção para os discursos e experiências não completamente coesos e cujos fins ainda não estão mapeados. Como consequência, mas também como base desse posicionamento, está uma abertura radical do sujeito racializado para a experimentação e sua consequente possibilidade de indeterminação.

[1] A tradução desta entrevista é parte das pesquisas desenvolvidas por Muniz, em seu projeto de Mestrado em História, Crítica e Teoria da arte pela ECA-USP, com orientação de Benetti.
[2] How to see a work of art in total darkness, p. 30. Tradução de Leandro Muniz.

 

Confira a entrevista completa abaixo:

 

O historiador da arte Darby English [fala] porque um novo renascimento negro pode, na verdade, representar um retrocesso

Darby English entende o poder da arte. O autor de “Como descrever uma vida: notas a partir da intersecção entre arte e terror racial” (2019) afirma seu lugar em nossas vidas durante esse período de turbulência social e incessante violência racial nos Estados Unidos [America]. Oportuno, comovente e penosamente verdadeiro, o trabalho de English sobre a história da arte e o pensamento afro-americanos [African American] nos provocam a lembrar da capacidade que a arte tem de mudar não apenas nossas vidas, mas as maneiras como nos vemos e o mundo em geral.

Reverenciado no campo [da arte] como uma liderança de ideias, o acadêmico nascido em Cleveland é atualmente Professor de História da arte na cadeira Carl Darling Buck na Universidade de Chicago e, em 2010, recebeu o prêmio Quantrell da Universidade de Chicago por excelência no ensino de graduação, o mais antigo da nação.

Com uma carreira na academia abrangendo mais de duas décadas, English publicou diversos artigos, livros e palestras. Além de “Como descrever uma vida”, estes incluem “1971: Um ano na vida da cor” (Universidade de Chicago, 2016) e “Como ver um trabalho de arte na escuridão total” (MIT, 2007). Também co-editou volumes que incluem “Entre outros: Negritude no MoMA” [Among others: Blackness at MoMA], com Charlotte Barat (MoMA, 2019) e “História da arte e emergência” [Art history and emergency], com David Breslin (Yale, 2016).

Recentemente, English dividiu comigo suas reflexões [reflections] sobre nosso momento atual, como a arte mudou nas últimas décadas e o porquê das generalizações da arte negra [Black art] serem tão problemáticas.

Folasade Ologundudu: Você é muito perspicaz [keen] sobre os problemas da generalização no mundo da arte considerando como a arte afro-americana é pensada, criticada e discutida. Qual é o seu maior problema com essas generalizações? Como, em sua opinião, o trabalho dos historiadores pode remover ou reduzir os usos da generalização?

Darby English: Meu problema com a questão da generalização é que parece uma maneira irresponsável de responder à diversidade da arte e à sua especificidade. Se você entende arte como alguma coisa diferente de você mesmo, como o trabalho de outra consciência, então é muito difícil generalizar sobre isso. A arte reflete a imensa variação no campo da experiência, nos oferece oportunidades de explorar e chegar, com essa plenitude, a termos diferentes. Precisamos resistir às considerações [accounts] sobre arte que suprimem a variação, que são desinteressadas [nonchalant] sobre essas oportunidades preciosas.

Não sou um grande fã do “sempre”, mas artistas negros e seus defensores [advocates] “sempre” têm um problema. As avaliações sobre o que artistas negros fazem são esmagadoramente reduzidas a uma ou duas coisas: eles nos apresentam coisas sobre nós mesmos ou nos apresentam outras coisas sobre nós. Em algum momento [once upon a time], essa sujeição [bondage] discursiva, essa limitação, foi imposta externamente: foi uma maneira do racismo anti-negro manter o alcance conceitual e prático o mais restrito [narrow] possível. Hoje, nós produzimos isso internamente, replicando em nossa própria imagem uma situação na qual o espectro de assuntos sobre os quais artistas negros podem falar são espantosamente restritos [narrow] — muito mais restritos que seus compromissos [engagements] indicam — e nós discutimos os artistas [practioners] como se fossem intercambiáveis entre si.

Nós renunciamos às oportunidades de romper [disrupt] com essa redundância rebaixada [demeaning]. Por quê? Se todos os artistas negros fazem a mesma coisa, então por que alguém deveria tomar um certo artista negro mais a sério do que toma um Advil?

FO: A história da arte como muitos conhecem, tradicionalmente, foi contada pelos olhos de homens brancos. Em sua opinião, o que estudiosos afro-americanos — homens, mulheres, queer e não-bináries — trazem para esse campo de estudos?

DE: De fato, outras vozes têm configurado [setting] agendas alternativas para a prática da história cultural por mais de meio século. Para mim, algumas das intervenções mais comoventes [affecting] foram feitas por intelectuais feministas e queer e outros produtores culturais nas fronteiras da identidade. Eu valorizo, especialmente, aqueles que estudam as limitações operacionais, descrevem-nas com precisão, e tentam ir além delas. Crucialmente, meus recursos mais estimados não deixaram que as más notícias das análises circunscrevessem seu pensamento e ação; ao contrário, agiram na possibilidade e insistiram na criatividade. Eu não poderia fazer o que faço se eles não estivessem lá, sendo formidavelmente históricos, insistindo em serem lidos, exercendo pressão.

Mas, obviamente, ainda resta muito trabalho. Uma maneira de mover o campo é, primeiro, reconhecer que uma área de estudos é usualmente maior que os mapas existentes indicam e, segundo, fazer uso do espaço que você ganha em consequência desse reconhecimento. Uma estrutura [framework] mais rica e ampla [broader] é prontamente disponível e isso é algo que você sente quando tenta olhar e ler tudo amplamente [widely]. Isso ajuda a lembrar que se você está fazendo, está acontecendo na sua área de estudos. Se seu trabalho conduz [manage] o avanço do pensamento em meia polegada, então você está movendo o campo que veio mover.

FO: Quais são algumas das maiores mudanças que você tem visto na pesquisa e participação dos estudos afro-americanos e da história da arte afro-americana nos últimos 20 anos?

DE: A única grande mudança é o estreitamento [narrowing]. Quando penso sobre onde esses campos estavam 20 anos atrás, digamos, entre 1999 e 2003, a variedade de atividades comparativamente me atordoa [staggers me]. A arte e as ideias eram muito mais provocadoras. Havia muito mais nuance na conversa. Havia mais conforto com o desconforto.

Não sei se você conhece “Freestyle”, uma exposição no Studio Museum curada por Thelma Golden e Christine Y. Kim. Falando grosso modo, a mostra dizia “Veja quantas coisas diferentes artistas negros estão fazendo agora. Como lidamos com isso?” A exposição registrou a inegável emergência de uma variedade emocionante [thrilling range] de tons e texturas. Você não poderia realmente gostar ou desgostar de “Freestyle” como um todo. De tão cheia de diferenças que estava. Ela reconhecia e acolhia [embraced] a fragmentação e a multiplicidade no campo cultural. Dentro de “Freestyle”, você tinha que negociar a forma [form] para chegar ao significado e o significado era tão precário que você tinha pessoas especulando [wondering] se as coisas eram de algum modo “pós-negras”.Uma crise formal se enraizou na diversidade e engendrou uma crise conceitual. Tinha que haver conversa.

É escandaloso para uma sensibilidade progressista pensar que as coisas eram muito mais complexas nesse campo uma geração atrás do que são agora, mas temos isso. Hoje em dia temos um desenho animado de arte por todos os canais 24 horas por dia, sete dias na semana. As principais exposições e os paradigmas de publicação reduzem tudo a uma nota. Porque o projeto central é a comunicação, qualquer coisa que resista ao aparato de comunicação da arte falha em deixar uma marca. Um encontro ordinário no mundo da arte é um encontro com carisma e satisfação [content]. Em uma situação como essa, a forma é uma obstrução ou uma distração. E, de fato, a forma se tornou progressivamente irrelevante durante esses 20 anos. Quando a arte real aparece [come along], sua importância desaparece em uma mensagem sobre a parte que está adequada [on point].

FO: Em uma conversa prévia, você mencionou que precisamos de uma linguagem diferente para falar sobre um artista negro que está trabalhando com abstração versus arte figurativa e representações de negritude [blackness][3]. Poderia elaborar sobre isso: O que é essa linguagem diferente sobre a qual você está falando?

DE: Nossa linguagem não precisa ser diferente, mas precisa ser expandida e flexionada [need to expand and to flex]. Precisa ser capaz de imaginar favoravelmente um outro tipo de projeto emergindo do espaço representacional negro [Black representational space], um que não necessariamente compartilhe de seus objetivos e estratégias.

Por exemplo, você não pode pegar a realidade da arte abstrata sem engajar no discurso sobre arte abstrata, que, ironicamente, é a arte mais discursiva da era moderna. E você não pode tomar a realidade de um artista negro fazendo abstração sem lidar com a própria abstração [abstractness] da negritude [Blackness] como uma matriz de identificações e projeções, igualmente reais e irreais.

Mas a maior parte do que você lê sobre artistas negros fazendo abstração erradica essa complexidade para produzir uma narrativa mais coesa e menos conflitiva sobre raça e representação. Receio que artistas negros abstratos não vão receber a visibilidade e compreensão que merecem até que nós renunciemos as maneiras categóricas como olhamos para as coisas e os tons categóricos que adotamos para produzir e compartilhar conhecimento culturalmente específico. A verdadeira radicalidade dessa escolha precisa de um ambiente facilitador que ainda não existe.

FO: No seu livro de 2007, “Como ver um trabalho de arte na escuridão total”, você habilmente argumenta que a arte negra [Black art] hoje é quase uniformemente compreendida em termos de sua negritude [blackness], com públicos que geralmente têm expectativas [expectating] ou exigências [requiring] de representações da raça. Você acha que temos visto um momento crítico dessa situação nos últimos 10 ou 15 anos com um aumento agudo da figura negra [Black figure]? Ou há um aumento de espaço para mais artistas negros provocando-se hoje para trabalhar fora do cubo branco da raça e das questões raciais [the white cube of race and racial issues] por meio da figuração?

DE: Essa é uma questão muito complicada. Por um lado, a figura é um signo de vida. E, em uma série de eventos prolongados de morte, os signos de vida são absolutamente cruciais e precisam ser completamente honrados.

Por outro lado, a proliferação da figura é um claro indicador de mercado: quando há o gosto para arte negra [Black art], ou para a negritude como arte [Blackness as art], a figura — que gera satisfação, efeitos não ameaçadores por sua presença e cai bem [goes down easy] — tem um ótimo momento [great fucking time]. Então você precisa ser capaz de fazer distinções entre, digamos, figuras de vitalidade negra, figuras mágicas de mercadorias, figuras que provocam os termos de sua comodificação e figuras que fazem importantes trabalhos de representação precisamente porque são difíceis de “decifrar” [figure out], que é como consumimos cultura.

Para mim, a coisa preocupante sobre uma inundação de figuração é sobre o tempo e os recursos que não estamos gastando na parte de nós que não podemos descrever enquanto imagem [to image], a parte que não vai vender, os mistérios, as frações, as aberrações [freak]. Então, sempre que eu vejo uma figura, a primeira coisa que eu preciso fazer é determinar o que ela é e para que serve [what it is for]. É uma bruxa boa ou uma bruxa má?

FO: Isso conversa com as ideias de consumo de corpos pretos, mas de maneira diferente, lucrando sobre eles de uma maneira que é profundamente enraizada na escravidão e na opressão.

DE: Sim, certo. Digo, você não está lucrando sobre os corpos; você está lucrando sobre o consumo ele mesmo — você está trabalhando dos dois lados da mesa.

FO: Que não é diferente do que estava acontecendo, por meio da escravidão — é exatamente a mesma coisa. E quando você pensa como os donos de escravizados eram capazes de conseguir empréstimos de bancos baseados em quantos escravizados eles tinham, então podiam fazer dinheiro dos dois lados. Você pode fazer dinheiro pelo trabalho árduo deles, mas você também podia fazer dinheiro pelos seus corpos, de maneiras diferentes. É apenas doentio [sick].

DE: Sim, realmente é.

FO: O que soa e parece [feels] muito diferente do que o que você falou antes em relação à exposição “Freestyle”, a ideia de que há 20 anos atrás artistas negros estavam mostrando tanta diversidade.

DE: Muitas pessoas explodiram a grade [had gone off the grid]. E quando você encontra com elas, isso resultou em uma confusão interessante. Você não perdeu o suporte [hold] da especificidade cultural, mas havia um sentimento [sense] fresco de possibilidade, uma possibilidade realmente expansiva.

FO: O que mudou?

DE: Bem, muito. Há uma evidência muito mais clara e aberta [out-in-the-open] de que o sistema é equipado contra pessoas não brancas [POC]. E há uma consciência correspondente sobre o escopo do trabalho. É um trabalho de período integral para simplesmente se sentir bem; ser realmente criativo é apenas a cobertura do bolo. Mas acho que perdemos o suporte da parte da arte que é centralmente envolvida com a contestação [challenge], com a busca pela surpresa, com a ampliação da tolerância. Em minha visão muito limitada, a última coisa com a qual podemos arcar é com a localização de obstruções em nossos próprios caminhos ao promover representações descuidadas [harebrained], valorizando arte que diz o que todo mundo já sabe e publicando palavras que não dizem nada. Isso, para mim, parece uma perda terrível de recursos e oportunidades extremamente difíceis de se conseguir. Quem vai em busca da arte procurando por seu próprio reflexo? Para isso servem os espelhos.

[3] Há importantes debates sobre o quanto a noção de “negritude” já carrega histórias e pesos culturais específicos. Ver Denise Ferreira da Silva, “Luz Negra”. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=-47X_7XJnOU