CONVERSA COM ARTISTA: ELIDAYANA ALEXANDRINO E AS NARRATIVAS QUE SE ENCONTRAM
por Deri Andrade
16 de setembro de 2020
A imagem pode ser compreendida como um importante campo de disputa simbólica de narrativas. A artista Elidayana Alexandrino captou essa essência ao propor a série Narrativas que se encontram (2015-), na qual cria um diálogo entre tempos, povos e histórias diferentes em um conjunto que já ultrapassa 600 imagens. Com uma jovem carreira marcada pelas experiências como arte-educadora, Alexandrino tem desenvolvido uma prática que estabelece um diálogo direto entre as duas vertentes. Nesta conversa com o Projeto Afro, a artista fala sobre seu processo artístico e a experiência curatorial com a exposição “Corpo que é meu outro”, que desenvolveu ao lado de Aline Baliberdin e foi interrompida devido à pandemia do novo coronavírus.
Deri Andrade (Projeto Afro): Você é uma jovem artista que tem explorado uma linguagem que intersecciona as artes e a educação. Pode se apresentar e falar mais sobre o seu trabalho?
Elidayana Alexandrino: A minha formação é em Artes Plásticas com licenciatura em Educação Artística. Desde 2012, estou envolvida com mediação, trabalhei em museus e centros culturais de São Paulo, desenvolvendo visitas educativas para diferentes públicos. É a partir dessas experiências, durante as pesquisas, ouvindo as pessoas, mantendo um contato constante com exposições de arte, observando o cotidiano que o meu processo criativo acontece. Hoje me reconheço como uma artista educadora, todas as ações que desenvolvo estão relacionadas. Ao criar sempre me pergunto: quem são meus pares? Para quem eu faço arte e para quê? Como nos relacionamos com as imagens? São as imagens que nos acessam ou nós que acessamos as imagens? Como aprender algo com as imagens? Por que certas imagens permanecem? São essas dúvidas que têm me movido. Todas as imagens me interessam, porque elas contam muito sobre a sociedade que estou inserida. Utilizo a fotografia como forma de expressão, e quando exponho um trabalho também faço uma ação com o público porque o estar junto partilhando me interessa muito.
DA: Na série Narrativas que se encontram (2015-), a fotografia é utilizada como dispositiva de diálogo entre os tempos, povos e realidades diferentes. Quando a série se iniciou? Pode comentá-la?
EA: Quando criança, uma das minhas brincadeiras preferidas era observar cartões postais com reprodução de pinturas e perguntar para as minhas irmãs o que viam, essa relação com as imagens vem de bastante tempo. A série Narrativas que se encontram começou em 2015, quando trabalhava como educadora na Pinacoteca do Estado de São Paulo. Diariamente me deparava com aquele acervo e tinha o desafio de estudá-lo para poder desenvolver meu trabalho com o público da melhor forma, então olhava uma imagem e lembrava de outra, o mesmo acontecia folheando um livro, acessando as redes sociais, até que um dia eu percebi que esse processo já estava naturalizado e meu repertório visual cada vez mais diverso. Atribuo essa diversidade às reproduções fotográficas também porque tive e ainda tenho acesso ao universo das artes não só pelos museus. Entendo que são as imagens que chegam a mim, elas me encontram, elas me acessam, é algo que acontece entre a atenção e a distração, ao olhar uma imagem ela desencadeia uma vibração no meu corpo, ativa minha memória, não há uma lógica. Então, acolho, entendendo que as imagens estão se comunicando comigo, evocando inesperadamente outras e, assim, criando essa fusão entre épocas, povos e realidades diferentes.
DA: A série também apresenta o “Laboratório de escuta de imagens”, forma experimental que você encontrou de colocar o público em contato com essas narrativas visuais. Podemos observar aqui seu trabalho como educadora. Poderia comentar sua atuação nesse campo?
EA: Meu desejo, ao concluir a graduação, era trabalhar em museus. A oportunidade que tive foi na área educativa, comecei na Caixa Cultural, depois fui para a Pinacoteca, onde pude desenvolver um trabalho mais contínuo (2012-2016), pelo fato de poder criar visitas educativas para todas as faixas etárias no acervo e nas exposições temporárias. Também trabalhei como educadora em outros espaços culturais de São Paulo e no Festival de Artes Vertentes em Tiradentes (MG). Hoje, penso que meu museu é o mundo. De 2018 pra cá tenho feito muitas ações nas periferias, rodas de conversas, oficinas, formação para professores. O contato com as pessoas é muito especial porque ao ensinar aprendo, é muito gratificante. Paulo Freire no livro Pedagogia da Autonomia [Paz & Terra, 2019] diz que “ensinar exige saber escutar”, então carrego esse ensinamento pra minha vida. O “Laboratório de escuta de imagens” surgiu com o desejo de aproximar as pessoas do universo das imagens. Utilizando de todas essas experiências que já vivi como educadora, estimulo o público a usar seus sentidos, mas não existe uma forma e sim um processo sensível e subjetivo, um tempo mais estendido que permite que as sensações, falas e silêncios aconteçam.
DA: Além de imagens de obras de diversos artistas, você utiliza na série de retratos seus e de seus familiares para criar um verdadeiro álbum de família. Como a questão da memória se desdobra, neste caso, nas colagens que faz?
EA: Quando comecei a fazer essas relações em 2015 não entendia muito bem o que estava acontecendo, todo tipo de imagem me interessava, elas apareciam de forma recorrente. Depois de um tempo, fui me aproximando das fotografias, de forma paralela criando autorretratos, olhando mais para minha história e percebendo as lacunas, porque famílias negras raramente têm fotos dos avós ou bisavós, nossas memórias foram roubadas pelo processo de colonização. Então, ao me deparar com uma imagem de um fragmento de escultura egípcia, o curso do meu trabalho mudou, vi uma relação direta com o meu rosto. Nunca havia me incluído como imagem dentro do Narrativas que se encontram, ao fazer isso percebi a minha incompletude, assim como aquela escultura. Eu não sei de qual África vieram meus ancestrais e essa imagem revelou esse incômodo, aí senti que as imagens estavam me pedindo justiça. De forma natural fui incluindo as fotos de família e fazendo intervenções mais diretas, buscando minha ancestralidade, as imagens se revelando como parentes distantes, por isso agora entendo esse novo conjunto como um álbum de família.
DA: Ao termos contato com todas essas centenas de imagens, somos recepcionados por uma potente possibilidade de discussões semióticas, entre outros. Para você, qual o “papel” de atuação política da fotografia?
EA: Nunca tivemos tanto contato com as fotografias como agora, as câmeras acopladas aos telefones celulares possibilitam uma infinidade de imagens, e por isso precisamos cada vez mais refletir sobre como usamos a fotografia na nossa sociedade e como ela pode nos manipular. Precisamos estar cientes que a fotografia possui diversas funções, não é uma realidade completa, é sempre um recorte; quem nos garante que a fotografia é um documento, testemunho de um fato? A fotografia é sempre uma nova realidade. Atualmente, grupos que historicamente são oprimidos (mulheres, pessoas negras, povos originários, pessoas com deficiência e comunidade LGBTQI+), ao ter uma câmera na mão podem contar suas próprias histórias, construir outras narrativas, então podemos pensar que o papel da fotografia na atuação política é muito importante nesse sentido, mas não podemos descartar o lado negativo da fotografia que ainda é utilizada para incriminar injustamente pessoas, por exemplo. Penso que temos um longo caminho pela frente, as pessoas precisam aprender a enfrentar as imagens, descolonizar o olhar e esse processo não é simples, mas é necessário para não sermos ludibriados pelas ideias falsas que as fotografias transmitem.
DA: Você também assinou a curadoria da exposição “Corpo que é meu outro” (2020), ao lado de Aline Baliberdin. Como seu processo curatorial acontece em paralelo ao fazer artístico?
EA: Essa experiência foi muito significativa porque foram reunidas trinta artistas mulheres de gerações e experiências muito singulares. Ao pensar a exposição, imaginei como uma instalação, um corpo só. Ocupamos todo o Centro de Educação e Cultura Francisco Carlos Moriconi (Suzano-SP) em espaços que geralmente não são considerados lugar para expor, como a parede da escada e o jardim foram utilizados. Meu tempo e dedicação foram quase exclusivos no processo curatorial. Infelizmente a mostra ficou aberta apenas uma semana e não pude realizar o “Laboratório de escuta de imagens”, devido à pandemia, mas para essa exposição selecionei imagens em que o corpo está em evidência. A proposta da oficina era convidar as pessoas a relacionar as imagens do Narrativas que se encontram com as obras das demais artistas da mostra.