A curadora Ué Prazeres. Foto: Divulgação

CONVERSA COM CURADORES: UÉ PRAZERES

por Luciara Ribeiro

26 de julho de 2021

A curadora Ué Prazeres. Foto: Divulgação

Na nossa sexta entrevista da série Conversa com Curadores, neste mês, conversamos com Ué Prazeres. Artista e curadora, vem desenvolvendo uma pesquisa artística sob o eixo decolonial e perspectivas da América Latina e uma prática curatorial que chama de curandeiria. Prezeres tem articulado uma discussão sobre o lugar-não-lugar ou não-binariedade em produções recentes no campo artístico. Natural de Paulista (PE), atualmente mora em Curitiba (PR), onde trabalha e é acadêmica de Artes Visuais pela Universidade Federal do Paraná. A entrevista integra a pesquisa Mapeamento de curadoras, curadores negras, negros e indígenas que pode ser acessada aqui.

Fachada do Centro Cultural Sesi Heitor Stockler de França, Curitiba, com artistas da mostra “Kwenda Mbele Siyo Kufika”. Ao fundo, faixa Desde quando você sou negrx, 2020, de Diego Crux Foto: Divulgação

Luciara Ribeiro: Como surgiu o seu desejo pela curadoria, e como você tem construído a sua trajetória no campo?

Ué Prazeres: É interessante parar e olhar para trás na tentativa de traçar uma possível narrativa, mesmo que recente, da minha atuação na curadoria. Dito isso, lembro-me de antes de 2019 participar de projetos como artista e, por tabela assumir, o que hoje entendo como funções que compreende o trabalho de curadoria, mesmo sem ter naquele momento entre 2016 e 2017 nenhum entendimento prático ou conceitual que poderia fundamentar o pensamento curatorial, mas que a necessidade e a vontade de realizar os projeto culturais e eventos associados ao departamento de cultura da Fundação Casa do Estudante Universitário do Paraná era muito maior do que qualquer formação prévia acerca do campo da curadoria. Acho que foi na força da vontade de mudança e de propor um olhar para produção dos estudantes negros de artes visuais da Universidade Federal do Paraná, é que tudo começa, despretenciosamente.

A minha formação indicava poucas alternativas de atuação. Dentro dessa lógica acadêmica eu acreditava que o caminho percorrido me levaria às áreas já consolidadas, como arte educação, visto que meu curso é de licenciatura em artes visuais, os outros caminhos seriam o da crítica de arte, história da arte ou poéticas visuais, pesquisadora baseada na academia de maneira geral.

Mas é em 2019, quando retorno de Salvador/BA do meu intercâmbio nacional, que passo a entender e estudar a curadoria como um campo possível de atuação e provocação, para além da pesquisa poética e da arte educação, como minha formação indicava até então. Foi a partir da disciplina em Projetos Avançados em Curadoria, ministrada pela professora Fabricia Jordão, que passo a entender e estudar a curadoria como um campo de atuação e de potência afetiva e de afetação, além do desenvolvimento de outras competências que o árduo, e não tão glamuroso, trabalho de curadoria comprometida com a arte me exigiu.

O “primeiro trabalho” na posição consciente de curadora foi o Projeto “Mostra Desvio”, fruto da disciplina de Projetos Avançados em Curadoria do Departamento de Artes Visuais da UFPR em 2019. Diante da movimentação do CUBIC 4 ou Circuito Universitário da Bienal Internacional de Curitiba que estava acontecendo na cidade em 2019, voltando o olhar para as produções dos estudantes universitários de Curitiba, do sul do Brasil e de países fronteiriços da América Latina. Circuito legitimado e consolidado por todas as instituições museais e culturais da cidade de Curitiba. Foi então que nós, da equipe de curadores da “Mostra Desvio”, pensamos em propor como alternativa e mote de investigação dessa plataforma curatorial a abertura de um edital onde os critérios de participação seriam o da submissão de trabalho ao Cubic 4, diante da recusa dos trabalho e propostas enviadas, baseada nas provocações dos textos “A solidão do projeto” do filósofo Boris Groys e “Fracasso, desvio e negação da norma e suas poéticas” de Carlos Eduardo Soares, para pensarmos as relações entre submissão, recusa, projeto e fracasso no campo das artes visuais.

Mostra “Desvio”, com obra de Felipe Uranida, curadoria de Ué Prazeres, Carolina Azevedo, Flávia Bührer, Jaime Veiga e Felipe Brüschz. Foto: Divulgação

Importante comentar que havia duas categorias possíveis de participação do Cubic 4, uma de produção artística e outra que se inaugurou naquele ano, a categoria de produção crítica. Eu como estudante de artes visuais também submeti trabalhos nas duas categorias tendo sido a única dos cento e quantas inscritos a ser aprovada nas duas categorias, poética e crítica. Contudo, tive que optar por uma única categoria, foi onde optei pela posição de crítica de arte do Cubic-4. Essa virada foi muito importante para entender e estabelecer um pensamento estratégico e tátil no campo da arte, podendo estar estrategicamente dentro do circuito oficial e taticamente fora, na construção de um lugar com dignidade para os artistas antes recusados, artistas que eram amigos, colegas de sala de universidade ou mesmo de curso em artes e áreas afins. Muito do nosso processo da equipe curatorial da “Mostra Desvio” era o de articular e lançar um outro olhar sob nova perspectiva acerca dessas produções que tinham potências a serem investigadas, e que por motivos de critérios não passaram no circuito “oficial”. Nasce, então, do desejo de realização completamente autônoma e sem recursos institucionais a “Mostra Desvio”. Realizada inteiramente pelos alunos da disciplina de projetos avançados em curadoria, em parceria com o desejo dos artistas em expor seus trabalhos.

Desde então, sigo construindo articulações na curadoria, em projetos nacionais e internacionais com instituições como o Musa, Museu de Arte da UFPR, Oyoun Kultur NeuDenken em Berlim e Centro Cultural Sesi Heitor Stockler de França em Curitiba. Importante frisar que não tenho vínculo direto com nenhuma dessas instituições culturais.

LR: Um aspecto presente na carreira de muitos curadores negros/as/es é o desenvolvimento de uma atuação múltipla, ou seja, atuando como curador, artista, pesquisador, educador, entre outras áreas. Como você vê isso? Essa multiplicidade aparece em sua atuação de que forma?

UP: Sem sombra de dúvidas a interdisciplinaridade aparece na minha produção, seja atuando como designer na criação das identidades visuais e materiais gráficos para divulgação dos projetos como na construção de um pensamento curatorial que passa antes por um pensamento poético e pela experiência da arte educação, visto que antes de me situar no campo da curadoria eu era uma artista e futura professora, além da formação técnica em design de moda e metade de uma graduação em design de produto e gráfico, para só depois assumir esse título de curadora de arte contemporânea. Todas as minhas experiências, mesmo que em áreas afins, foram e ainda são fundamentais para meu processo prático e de pesquisa. Acredito muito que o cruzamento dessas e de outras competências me ajudam a pensar caminhos, inclusive na construção de uma prática curatorial que busca forjar caminhos anti-coloniais diante das estruturas institucionais.

Registro da performance da artista Vi Gabarda na exposição “Kwenda Mbele Siyo Kufika” [“Ir para frente, não significa chegar em algum lugar”], curadoria de Ué Prazeres, no Centro Cultural Sesi Heitor Stockler de França, Curitiba. Foto: Diego Crux

LR: Desde meados dos anos 90, uma série de eventos têm marcado o sistema das artes com debates e propostas decoloniais, revisionistas e críticas. Os artistas, curadores e teóricos não brancos têm sido os grandes contribuidores para essa mudança de paradigmas e da hegemonia branca-elitista-europeia-judaíco-cristã no poder de definição dos rumos das artes. Como você vê esse momento?

UP: Talvez esse seja o melhor momento para uma artista, curadora transvestigenere não-binária construir um espaço, mesmo que ainda diante das precariedades e limitações estruturais, poder se fazer curadora e agente da arte na construção de novos imaginários. Até alguns anos antes eu só conseguia me ver como artista e como educadora, até me reencontrar com o pensamento decolonial por meios dos teóricos da América Latina e Caribe, passando também por alguns pensadores sul asiáticos. Tudo isso para dizer que, por estarmos no presente a partir do entendimento linear e ocidental de tempo, não consigo pensar em um outro momento da história nessa parte do globo menos difícil para uma agente da arte que carrega consigo a diáspora, racialidade subalternizada e identidade de gênero disruptiva comprometida com a ruptura da heteronorma binária. Mas, sem romantismos, acredito que estamos apenas no início do fim do mundo como conhecemos e, por isso, há muito caminho e transformações a serem implementadas e imaginadas na tentativa de derrubar o que ainda se mantém de pé.

Importante ressaltar que os debates anti ou decoloniais estão sendo ensaiados de modo mais contundente há pouco tempo. Claro que temos, desde início do século XX, textos como os de Frantz Fanon e, posteriormente, Lélia Gonzales, Walter Mignolo, entre outros, abrindo caminhos críticos para pensarmos e construirmos de modo autônomo narrativas condizentes com nossos corpos e existências, mas é mais recentemente que isso se apresenta. Gosto de chamar de “crise ética”, visto que hoje na contemporaneidade, com a globalização dos meios de comunicação e acesso ao mundo literalmente nas mãos, e claro, por uma constante reivindicação e movimentação por parte dos subalternizados, chega o momento que isso não pode mais não aparecer, ou mesmo ser tratado como “isso” ou “aquele assunto polêmico”. Não que tenha mudado estruturalmente, mas que na força da maquiagem ética surge em um outro lugar de dignidade discursiva, pois na prática o cenário ainda é de luta e de guerra.

Não-binariedade (série), 2021, de Ué Prazeres. Foto: Divulgação

LR: Sua pesquisa artística gira em torno dos temas citados acima, com forte presença, mais recentemente, de investigações acerca do lugar-não-lugar que é a “não-binariedade”, como você cita. Como isso surge também no seu processo de curadoria?

UP: Bem, esse lugar-não-lugar ou simplesmente não-binariedade tem se apresentado nas minhas produções mais recentes, onde questões ou categorias coloniais de gênero e de raça começam a se diluir. Quero dizer com isso que a não-binariedade é um lugar de potência e de corte no radical colonial. Gosto muito do título do filme da artista Jota Mombaça, “o que não têm forma tá em todo lugar”, é exatamente isso que quero dizer quando pontuei sobre lugar-não-lugar. Se as categorias de gênero que conhecemos são fundadas numa lógica binária-ocidental baseadas na diferença sexual biológica, me parece que só é possível então existir em dois papeis/performance/mentira na construção e castração desses corpos ocidentais, logo, é na não-binariedade que surgem as possibilidades de construção de inúmeras e múltiplas existências e maneiras de ser e estar no mundo.

Acredito que a não-binariedade hoje vem aparecendo em alguns sentidos, um deles é na reivindicação do gênero não-binário na construção de um lugar que se distancia da identidade de gênero homem ou mulher, mas sim na construção de outros imaginários fora da lógica do binarismo. Em um outro momento, a não-binariedade ganha também sentido na edificação da posição subjetiva de algumas humanidades, sobretudo humanidades trans. Se a cisgeneridade se constrói na violência do binarismo de gênero, é na contrapartida, mas não em oposição e sim na ampliação e deslocamento das múltiplas e indizíveis formas de experienciar a existência neste mundo, que a não-binariedade ganha força e formas. Não há script, não pode haver script, é justamente na potência da diferença subjetiva que esse lugar-não-lugar se apresenta. Não há uma subjetividade trans que seja igual, o que possa haver de proximidade são experiências culturais, sociais e estruturais experienciadas por pessoas trans vivendo no mesmo território geopolítico, mas não há subjetividade clonada, como podemos observar na cisgeneridade. Quando nos posicionamos no mundo enquanto pessoas trans, rompemos com a linearidade e imposição subjetiva do projeto colonial universalizante branca-elitista-europeia-judaíco-cristã entre outras mazelas, para então construirmos nossas subjetividades.

LR: Impactada pela pandemia, a arte precisou se voltar ao online de forma definitiva. Um dos seus últimos projetos foi a mostra virtual “Lacuna”, que reuniu concepções que discursam sobre novas linguagens através das novas mídias. De que forma o atual momento também impactou nas suas pesquisas e nos seus projetos?

UP: Acredito que o impacto foi apenas um susto pandêmico, a exposição Lacuna surge junto de perguntas sem respostas trazidas pela crise sanitária e de como lidaríamos com algo totalmente não previsto no campo da arte. Mas parte da minha pesquisa naquele momento foi entender estratégias já utilizadas ou possíveis para pensar o momento sem data que ficaríamos sem acesso a museus, exposições e a cultura de modo geral. Foi então que entendi que não havia tanta novidade assim, muito mais um estranhamento desse outro lugar entre o espectador/visitante com a materialidade/fisicalidade disso que agora se apresentava na rede. Foi então que a pesquisa me levou ao Google Arte e Cultura, criado dez anos antes da pandemia da covid-19, no qual o Google escaneia trabalhos de arte em parceria com grandes instituições museais do mundo e disponibiliza para visualização em sua plataforma, onde qualquer pessoa do mundo pode ter acesso. Nesse momento, eu me toquei de que quase toda experiência com os estudos das artes visuais no Brasil se davam por slides nas aulas de história da arte europeia. Tive inúmeras disciplinas de história da arte onde todo conteúdo era sobre arte branca e europeia e/ou euro-brasileira, mas mais de noventa por cento desses estudos se deram via fotografia estática colada no slide, isso me fez perceber e entender que não havia tanta novidade assim na utilização de uma plataforma virtual como recurso viável naquele momento. Depois desse primeiro start, pude perceber que estava diante de outras problemáticas, quais formatos e mídias eram possíveis de trabalhar com essa plataforma? Quais as limitações isso implicaria na escolha e, consequentemente, nas aproximações dos trabalhos? Gerando mais perguntas do que precisamente respostas a este momento crítico que havíamos entrado.

Cartaz exposição “Tropical Fury, Oyoun Kultur Neudenken”, Berlim, com curadoria de Ué Prazeres. Foto: Divulgação

LR: Você assina seus projetos como “curandeiria”. Poderia falar mais sobre esse conceito?

UP: Havíamos feito a abertura de uma exposição no Centro Cultural Heitor Stockler de França em Curitiba, onde tive o prazer de assinar a curadoria do processo de pesquisa dos artistas participantes, em parceria com Ana Rocha e Beatriz Lemos. Tudo aconteceu após a exposição em um evento de lançamento do livro da artista Castiel Vitorino, que fui uma das organizadoras aqui em Curitiba. Ao final do evento, a Castiel me presenteou com seu livro e fez uma dedicatória, dizendo: Ué, menos curadoria e mais Curandeiria. Foi onde tive um insight, minha avó materna já falecida era uma curandeira, nascida e criada no interior de Pernambuco, inúmeras vezes recebi suas rezas com folhas de pinhão para retirar minha febre e outras enfermidades, fazendo a frase da Castiel vários sentidos naquele momento. Talvez hoje esse conceito se aproxima de caminhos e escolhas anti-coloniais que faço para pensar meu trabalho em diálogo com a decolonialidade e a “cura” ou “curativos” dessas mazelas coloniais, ou apenas até então, estratégias.

Apagamento (frame), 2021, de Ué Prazeres. Foto: Divulgação

LR: Você poderia comentar um pouco sobre os seus projetos futuros?

UP: Não posso abrir muitos detalhes, mas estou trabalhando em uma nova plataforma Curatorial, onde tenho o prazer de realizar essa curadoria compartilhada junto a Ana Gisele (Transalien) e Sanni Est. Um projeto bastante pretensioso e disruptivo em diversos sentidos, somos um time de curadoras trans femininas e nordestinas. Nós três somos pernambucanos das regiões metropolitana do Recife, das cidades Paulista, Camaragibe e Jaboatão dos Gurarapes, são três cidades que basicamente alimentam e fazem a capital pernambucana girar sua economia. Somos três curadoras negras e periféricas pondo uma lente sobre as regiões Norte e Nordeste do Brasil, com desejos de potencializar trabalhos de artes de artistas também transvetigeneres. O projeto é uma parceria com o Schwules Museum Berlin e tem previsão de abertura para o começo de 2022.

LR: Você gostaria de acrescentar mais algum assunto ou comentar algum ponto?

UP: Na verdade não, gostaria só de agradecer o convite e o espaço. Obrigada!

 

A artista e curadora Ué Prazeres desenvolve uma pesquisa artística sob o eixo decolonial e perspectivas da América Latina. Constrói por meio desta uma possibilidade epistêmica alicerçada pelo campo da imaginação política, como partida para compreender os fenômenos que constitui a relação de subalternidade que encontra na colonialidade, elemento constitutivo do padrão mundial de poder, a dimensão simbólica desse processo de imposição subjetiva. É acadêmica de Artes Visuais pela Universidade Federal do Paraná e atua como curadora independente. Foi crítica de arte no circuito universitário da Bienal Internacional de Curitiba e tem realizado projetos independentes nos últimos anos.