Registro do dossiê do artista Manuel Messias dos Santos — Fundação Bienal de São Paulo/Arquivo Histórico Wanda Svevo.

MANUEL MESSIAS: UMA INTERPRETAÇÃO SOBRE E CONTRA O ARQUIVO

por Guilherme Fernandes

4 de agosto de 2025

Registro do dossiê do artista Manuel Messias dos Santos — Fundação Bienal de São Paulo/Arquivo Histórico Wanda Svevo.

O historiador jamais está sozinho,
mesmo quando trabalha no canto mais escuro do arquivo.

Michel-Rolph Trouillot (2016)

 

Gosto de pensar nessa afirmação de Michel-Rolph Trouillot como uma cena que expressa o meu percurso em busca do arquivo do artista Manuel Messias dos Santos (1945-2001). Como mestrando em História da Arte, busco analisar a produção, a circulação e a recepção crítica sobre o artista e sua obra. De certa forma, igualmente me vejo nesse “canto escuro do arquivo”, buscando acessar, desvendar e interpretar o arquivo de um sujeito que não somente foi atribuído à abjeção por parte de agentes da arte e da sociedade em geral, como também passou por um período de quase dez anos apagado do circuito artístico brasileiro e, consequentemente, da História da Arte após o seu falecimento.

É essencial assinalar que compreendo o arquivo para além de seu espaço físico. Trata-se de uma complexa rede de discursos que se materializam em diferentes documentos e, dessa forma, produzem narrativas a partir das relações de poder. Como discutido por Trouillot (2016), o arquivo tem estreita relação com as instituições que concebem e organizam o que entendemos como “fatos” e “fontes”, influenciando e delimitando as possibilidades de existência do que passa a ser entendido ou não como afirmações históricas.

Provocado por essas questões que concernem ao campo da História da Arte, tenho buscado direcionar uma “luz negra” sobre o arquivo de Manuel Messias e sobre os discursos produzidos sobre o artista, propondo revelar “o que está oculto, transparente em conformidade com a norma” (Mombaça, Mattiuzzi, 2019, p. 15). Ao longo do processo de análise das fontes primárias sobre o artista (matérias jornalísticas e colunas de arte), foi se evidenciando um arquivo, concebido a partir de diferentes enunciados, sobre o xilogravador e a sua biografia e produção artística. Em diálogo com Saidiya Hartman (2020), deparei-me com uma série de textos que produziram e cristalizaram uma verdadeira gramática da violência ao se referir à história do artista e sua obra.

Silêncios no arquivo

Manuel Messias dos Santos foi um artista que usou a madeira como principal suporte de expressão de suas inquietações, pensamentos e experiências sobre ser/estar no mundo. Um xilogravador nato, que transbordou a estética do cordel, da gravura japonesa e do expressionismo alemão para desenvolver uma estética própria por meio da linguagem da gravura. De acordo com declaração própria sobre sua forma de fazer arte, ele afirma:

Faço artes plásticas, xilogravuras que não são acabadas, não ficam prontas, não são completas. Cada trabalho é o início de um outro trabalho. Estamos aprendendo sempre. Arte, cultura, não é algo pronto, está encadeado na vida (Funarte (RJ): Dossiê de Manuel Messias, 1983).

Com uma produção artística voltada sobretudo para a xilogravura, mas tendo também criado pinturas à óleo e giz pastel sobre tela, ao longo de três décadas, o artista circulou em diversas instituições de arte e cultura, no âmbito nacional e internacional.

Após nascer e viver a primeira infância na cidade de Aracajú (SE), Messias e sua família se mudaram para o Rio de Janeiro, estabelecendo-se nas regiões periféricas da capital fluminense. A sua carreira artística se iniciou em 1962, por meio de uma bolsa de estudos concedida pelo artista e professor Ivan Serpa para o curso Análise Crítica, que fazia parte da programação dos ateliês livres do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM Rio). Foi durante as aulas no MAM Rio que Messias conheceu a gravura e, sob orientação de Serpa, aproximou-se da prática da xilogravura. No transcorrer das décadas de 1960 a 1980, o artista desenvolveu uma estética singular dentro da arte brasileira, criando obras de grande impacto visual e com temas que circundam desde as subjetividades do artista para com o seu meio, até o contexto sociopolítico da época perante a ditadura civil-militar brasileira.

Em todo caso, sua contribuição à gravura foi subsumida aos discursos produzidos sobre o xilogravador, como é possível verificar no compilado abaixo de trechos de matérias jornalísticas, veiculadas entre as décadas de 1960 e 1990, que discorrem sobre Manuel Messias dos Santos. Convido que reflitam sobre esse arquivo, com especial atenção ao que os discursos produzidos podem nos dizer sobre gênero, raça, classe e região.

Mosaico elaborado pelo autor com recortes de matérias jornalísticas veiculadas nas décadas de 1960 a 1990: Correio da Manhã (RJ); Jornal O Globo (RJ); Diário de Notícias (RJ); Jornal do Brasil (RJ) e Suplemento Literário de Minas Gerais (MG).

Considero que o arquivo acima expõe como uma gramática da violência foi engendrada pelos discursos sobre o Manuel Messias e sua obra, condicionando-os ao lugar da desumanização. Em certos trechos, os enunciados sobre o xilogravador se assemelham com os classificados da plantation. Ainda que possa existir um espaço precário de fala para o artista em algumas das matérias ou algumas poucas tentativas de reconhecimento ao seu trabalho, a violência colonial ressoa mais alto, ao se valer de marcadores como gênero, raça, classe e região para produzir e cristalizar a estigmatização atribuída ao artista.

Mosaico elaborado pelo autor com imagens e recortes de documentos do dossiê de Manuel Messias presente na Funarte (RJ) e do acervo pessoal de Martha Pires.

O processo de acessar, desvendar e interpretar o arquivo de Manuel Messias dos Santos se revelou algo complexo e permeado por ambivalências. Ao mesmo tempo que entendi que agentes da arte e profissionais do contexto jornalístico contribuíram para a subalternização do artista, também foi possível localizar textos que abordaram de forma positiva a biografia do xilogravador e os aspectos formais das suas obras, ainda que em menor grau.

Ainda em interlocução com Michel-Rolph Trouillot, destaco a presença da ambiguidade no arquivo, fenômeno presente nas construções dos processos e narrativas históricas. Por ser um espaço físico e simbólico que faz parte e é resultado das relações de poder, pode-se compreender porque determinadas narrativas sobre o xilogravador em questão foram legitimadas em detrimento de outras. Afirmo que parte considerável do arquivo de Manuel Messias está organizada a partir de normas e gramáticas coloniais, silenciando o artista, a sua potencialidade e intelectualidade no campo da Arte.

Portanto, as presenças e ausências encarnadas em fontes (artefatos e corpos que convertem um evento em fato) ou arquivos (fatos coletados, tematizados e processados como documentos e monumentos) não são neutras e tampouco naturais. São criadas. Como tais, não são meras presenças ou ausências, mas sim menções ou silêncios de vários tipos e níveis. Ao dizer silêncio, refiro-me a um processo ativo e transitório: “silencia-se” um fato ou uma pessoa como um silenciador silencia uma arma de fogo. A prática de silenciamento exige engajamento (Trouillot, 2016, p. 88, grifos meus).

Um breve panorama artístico sobre Manuel Messias

Com o propósito ético de romper com os silêncios que circundam o arquivo de Manuel Messias e o reposicionar na História da Arte produzida sobre e no Brasil, nesta segunda parte do texto irei me debruçar brevemente sobre um dos aspectos mais relevantes da produção artística do xilogravador: a palavra como gesto estético-político.

Analiso que o artista se utilizou dos enunciados, das palavras e da escrita para produzir trabalhos de grande força expressiva e comunicativa. Tendo produzido a maioria de suas obras durante o contexto da ditadura civil-militar brasileira, Messias propôs para o cenário artístico da época gravuras que discutem temas sociais e políticos. A partir de xilogravuras de dimensões de quase dois metros de comprimento, Messias fez de sua obra um manifesto contra o autoritarismo da época. As séries Nossa (1974) e Via-Sacra (1979) se tornaram produções indispensáveis para a análise e reflexão sobre a iconografia crítica ao autoritarismo na América Latina.

Obras retiradas do catálogo Manuel Messias: do tamanho do Brasil, produzido pela Danielian Galeria (RJ) em 2021. Da esquerda para a direita: Nossa vida, da série Nossa (1974); Não sabem o que fazem, da série ViaSacra (1979) e Nossa paz, da série Nossa (1974).

Na imagem acima, podemos observar três xilogravuras produzidas pelo artista. A primeira e a terceira obra, que fazem parte da série Nossa (1974), apresentam um alfabeto produzido pelo próprio Manuel Messias. Nele, observa-se um hibridismo entre a grafia da língua portuguesa e o universo criativo de Messias, criando uma comunicação visual praticamente indecifrável a olho nu. Compreendo que a poética de Messias desenvolvida na década de 1970 tem relação direta com o contexto histórico da época. As obras do xilogravador versam sobre um cenário de incertezas, medos e busca por direitos, como indicado pela utilização de pronomes possessivos na 1ª pessoa do plural — “nossa vida”, “nossa paz” —, para discutir a necessidade coletiva de mudanças na esfera sociopolítica.

Elementos como a elaboração de um alfabeto indecifrável e a apropriação de uma narrativa canônica do Ocidente — a Via Sacra ou Via Crucis — fazem de Messias um artista importante para a produção artística engajada da época. O gesto da palavra junto da figuração voltada aos símbolos e seus significados apresentam semelhanças com os projetos estéticos do Construtivismo Russo, da Pop art e até mesmo da Nova Figuração.

Sobre a sua circulação, vale destacar algumas das exposições nas quais Manuel Messias apresentou suas obras, sendo majoritariamente as séries Nossa (1974) e Via-Sacra (1979), assim como outros trabalhos: I Bienal de Artes Plásticas da Bahia (1966); Jovens representantes da arte gráfica na América do Sul, realizada pelo Itamaraty (1967); 17° Salão Nacional de Arte Moderna, no MAM Rio (1968); Exposição solo na Galeria Fátima (1968); 13 Brazilian Artists, exposição coletiva curada e organizada por Abdias do Nascimento na Wesleyan University de Middletown, Connecticut, EUA (1970); Mostra da Gravura Brasileira, evento paralelo à III Bienal Nacional de São Paulo (1974); Arte contemporânea Brasil/Senegal, no MAM Rio (1974); Xilogravuras de Manuel Messias, no Centro de Artes do Sesc, no Rio de Janeiro (1983); e Depoimento de uma geração: 1969-70, na Galeria de Arte Banerj (1986).

Dentre tantas outras exposições não citadas no parágrafo acima, concluo que, ainda em vida, o xilogravador circulou por diversas instituições de arte e cultura no Brasil e em outros países. No entanto, esse fato não o eximiu de vivenciar períodos de vulnerabilidade social e financeira, tampouco de ter sido desumanizado pela recepção crítica da época. Esse conjunto de fatores influenciaram em seu não reconhecimento pela história e historiografia da arte brasileira.

Após dez anos de seu falecimento, nota-se o início de um movimento de reinserir Manuel Messias dos Santos no circuito artístico nacional a partir de exposições individuais, como: Manuel Messias nas coleções Gutman e Kornis, na Caixa Cultural do Rio de Janeiro (2011); Manuel Messias: do tamanho do Brasil, na Danielian Galeria, Rio de Janeiro (2021); e, recentemente, Manuel Messias: Sem Limites, no Instituto Tomie Ohtake, São Paulo (2025). Sua obra também esteve presente em importantes exposições coletivas recentes: Terceiro Ato: Sortilégio, em Inhotim (2023); Dos Brazis, no Sesc Belenzinho (SP) (2023/24) e Pop Brasil: vanguarda e nova figuração, 1960-70, na Pinacoteca de São Paulo (2025).

A ação contemporânea de pesquisadores(as), historiadores(as) e curadores(as) de reposicionar a vida e obra de Manuel Messias aponta para um cenário positivo de valorização de sua produção artística. Porém, o seu arquivo ainda se encontra pouco revisitado e interpretado criticamente. Messias e sua obra nos convocam a reconhecer a face violenta e cruel do projeto colonial inserido no contexto da arte e em outras instâncias da sociedade brasileira. É preciso estar atento. É preciso destituir o silêncio.

A arte é um meio natural que pode ser de desespero ou de lucidez. Um meio que tenho de procurar o que não tenho. A maneira de tentar materializar o momento em que busquei aquilo que o homem perdeu. Estou tentando ser eterno.

Manuel Messias dos Santos (1983)

 

Referências:

Hartman, Saidiya. Vênus em dois atos. Revista Eco-Pós, [S. l.], v. 23, n. 3, p. 12-33, 2020.

Mombaça, Jota; Mattiuzzi, Musa Michelle. Carta à leitora preta do fim dos tempos. In: SILVA, Denise Ferreira da. A dívida impagável. São Paulo: Oficina de Imaginação Política e Living Commons, 2019. E-book. p. 15-27.

Trouillot, Michel-Rolph. Silenciando o passado: poder e a produção da história. Tradução de Sebastião Nascimento. Curitiba: Huya, 2016.