Obra de Castiel Vitorino Brasileiro, artista mapeada pelo Projeto Afro, na 11ª Bienal de Berlim. O trabalho faz parte da série No antiquário eu negociei o tempo, 2018. Foto: Dandara Maia

11ª BIENAL DE BERLIM: QUESTIONANDO O EUROCENTRISMO PELA PERSPECTIVA DO SUL

por Dandara Maia

30 de outubro de 2020

Obra de Castiel Vitorino Brasileiro, artista mapeada pelo Projeto Afro, na 11ª Bienal de Berlim. O trabalho faz parte da série No antiquário eu negociei o tempo, 2018. Foto: Dandara Maia

Temos todas as razões do mundo para pensar que esse ano não aconteceu e de repente já está para acabar. Mas aconteceu. O que ficou abalada foi mesmo nossa relação com o tempo e com o espaço. O que se perguntou foi como estar junto estando separado. The Crack Begins Within (A fissura começa de dentro) é um exercício de observar essas fissuras que nos mantém distantes e que nos tornam coletivos. É a lembrança de que aquilo que parece estável e certo não é indestrutível. É também o título da 11ª Bienal de Berlim.

Diferente de outras eventos similares, esta bienal começou devagar em setembro de 2019 no ExRotaprint, uma antiga gráfica localizada no bairro multiculti Wedding que se transformou em um espaço de cooperação abrigando salas e oficinas para artistas, trabalhadores criativos e projetos comunitários. Nesse tempo, aconteceram trocas, workshops e trabalhos coletivos que culminaram em duas exposições. O epílogo da Bienal começou em setembro de 2020 e termina neste mês de novembro, quando as restrições impostas pela pandemia se agravam novamente. A mostra foi dividida em três espaços – daadgalerie, KW Institute e Gropius Bau – e idealizada pelo time sul-americano composto por María Berríos, Renata Cervetto, Lisette Lagnado e Agustín Pérez Rubio. A perspectiva do Sul ficou evidente com a presença de diversos trabalhos que desafiam a normatividade ocidental, falam de solidariedade, participação coletiva, processos de cura, mas também de inconformidade.

A daadgalerie, o menor dos três espaços, não surpreendeu tanto. Sem dúvida o destaque foi o mix de videoclipes/performance de Naomi Rincón Gallardo (Carolina do Norte, EUA, 1979. Vive e trabalha na Cidade do México) no segundo piso. Em uma narrativa queer/cuir e decolonial, os personagens de “Resilience Tlacuache” – uma montanha, uma divindade do mangue, uma divindade caverna e um gambá – cantam, dançam e bebem montados em figurinos quase improvisados e brilhosos que contrastam com os cenários naturais e tranquilos do território de Oaxaca, ocupado por uma mina canadense. As letras fazem provocações ao capitalismo predatório que ignora os saberes e cosmologias locais e persegue ativistas.

“Requiem”, de Carlos Motta. Foto: Dandara Maia

No KW Institute, a mobilização coletiva contra o patriarcado cristão capitalista é o tema. Os quatro andares do prédio exibiram uma quantidade grande de trabalhos em vídeo e som entregando uma experiência mais marcante do que nos outros espaços. Lá, encontramos obras em grandes proporções e vídeos que impactavam força sonora e expressão. É o caso de “Requiem”, de Carlos Motta (nascido em Bogotá, Colômbia, 1978, vive em Nova Iorque), que fala sobre conflitos entre a vida queer e a moral cristã. Em um vídeo, o performer Ernesto Tomasini lamenta seus pecados ao cantar Requiem, de Gabriel Fauré, enquanto no lado oposto A crucificação de São Pedro, de Caravaggio, é encenada em silêncio nos deixando apenas com os sons da dor da crucificação em uma atmosfera quase masoquista.

Experiências da vida real informam os trabalhos de quase todos os artistas da mostra. A artista mapuche Paula Baeza Pailamilla (Santiago, Chile, 1988) desafia as autoridades e tece em conjunto com outras mulheres mapuches, forçadas a viver em meio urbano, um mapa de seu território ancestral violado pela colonização espanhola. As aquarelas quase surrealistas da artista turca Cansu Çakar (nascida em Istambul, 1988, vive em Izmir) narram notícias de jornal que também poderiam ser consideradas surreais. Como um pai que assassinou a própria filha ao olhar em seus olhos e acreditar que ela estava possuída pelo mal enquanto preparava seu café da manhã.

Obra de Paula Baeza Pailamilla, Kurü Mapu [Black Land], 2018. Foto: Dandara Maia

Gropius Bau foi nossa última parada. No outrora museu de artes decorativas do século XIX, somos recebidos com ironia pela obra “O museu do ostracismo” de Sandra Gamarra Heshiki (Lima, Peru, 1972). Passeamos entre diversas imagens de objetos incas, que flutuam dentro de cubos de vidro. No verso, uma coleção de palavras que demarcam a outridade não-europeia, como sul-americano, mestiço, estrangeiro, imigrante. A artista reflete criticamente sobre instituições de arte e cultura ainda hoje baseadas na demarcação da diferença através da exotização da produção de conhecimento do Sul.

Essa discussão é recuperada mais à frente no trabalho de Castiel Vitorino Brasileiro (Vitória, ES, 1996), artista mapeada pelo Projeto Afro. A artista apresenta uma série de autorretratos performáticos vestindo máscaras de papel machê encontradas em um antiquário em Santos. As máscaras eram vendidas como relíquias “africanas”, mas na verdade foram produzidas pelo amigo do dono da loja.  Seu corpo posa semidesnudo em um espaço composto por objetos antigos, com uma estante enferrujada e uma parede remendada. A camisa que serve como cinto do jeans reforça o cenário de improviso. Ao vestir ironicamente as máscaras africanas de Santos, Vitorino expõe a ambiguidade da exotização do corpo negro que serve para entreter ao mesmo tempo em que é subjugado pela colonialidade.

Obra de Castiel Vitorino Brasileiro, da série No antiquário eu negociei o tempo, 2018, na Bienal de Berlim. Foto: Dandara Maia

Essas reflexões críticas sobre a constituição de uma normalidade ocidental é parte do exercício decolonial, termo cunhado na América do Sul primeiramente por Aníbal Quijano e que domina a cena acadêmica e artística atual.  Para o autor, o binômio Modernidade/Colonialidade é inseparável, isto é, a modernidade produz a colonialidade. Violência epistemológica, racismo científico e pensamento patriarcal são intrínsecos a Modernidade/Colonialidade. O exercício decolonial é o próprio questionamento da normatividade da modernidade. Esses questionamentos são o cerne do trabalho de muitos artistas presentes na mostra, como Aline Baiana (Salvador, BA, 1985).

Também mapeada pelo Projeto Afro, Baiana se debruça nos conflitos ontológicos Euramericanos e Afro-latinos sob uma perspectiva feminista a partir do trauma e experiências de dor. No corredor escuro, pedras brutas suspensas por cordas e ganchos formam a constelação do Cruzeiro do Sul. A obra The Cross of the South (O Cruzeiro do Sul) força o espectador a se reposicionar no espaço para enxergar o que só é visível do hemisfério Sul. A sala é iluminada pelas estrelas, minérios brutos coletados em minas do estado de Minas Gerais. Não por acaso, as estrelas são os minérios com maior produção no Brasil, ouro, ferro, cobre e manganês com exceção do nióbio, o qual Aline não teve acesso.  O peso dos materiais na sua forma bruta reverbera a violência causada pela exploração predatória do solo durante séculos e relembra o rompimento das barragens da Samarco e Vale em 2015 e 2018, respectivamente. Além dos impactos ambientais e sociais dos dois eventos, Baiana chama a atenção para a violência cosmológica indígena infligida pela manipulação indiscriminada da geografia local. É uma obra potente que abre caminho para uma série de trabalhos que discutem a relação entre corpos, espaços, discursos e objetos.

Detalhe da obra de Aline Baiana, The Cross of the South, 2020, na Bienal de Berlim. Foto: Dandara Maia

A curadoria sul-americana combinou trabalhos com perspectivas decoloniais que denunciam as estruturas hegemônicas extrativistas. Estruturas que invisibilizam os saberes locais e privam o acesso e o direito a terras e recursos naturais. Mais do que uma denúncia das consequências ambientais, as obras de Bartolina Xixa (ou Maximiliano Mamani, Jujuy, Argentina, 1995), Aline Baiana, Gallardo, Paula Baeza Pailamilla, Marwa Arsanios (nascida em Washington, vive entre Berlin e Beirut, 1978) , só para citar alguns nomes, constroem a partir da crueza da realidade seus discursos visuais sobre coletividade e resistência. Enquanto a última edição se perguntava se é possível encontrar cura na arte, a atual 11ª Bienal aponta um caminho que se inicia na união entre corpos e espaços. Na revolução que é estar junto em um sistema neoliberal que, como disse Rosana Pinheiro Machado, mói coletividades.