Emanuel Monteiro diante do trabalho "Torre de Babel, Torre de Marfim: nome próprio". Exposição individual "Tinha textura o meu silêncio". Curadoria Henrique Menezes. Galeria de Arte Mamute. Foto: Leli Baldissera

CONVERSA COM CURADORES: EMANUEL MONTEIRO

por Luciara Ribeiro

22 de março de 2021

Emanuel Monteiro diante do trabalho "Torre de Babel, Torre de Marfim: nome próprio". Exposição individual "Tinha textura o meu silêncio". Curadoria Henrique Menezes. Galeria de Arte Mamute. Foto: Leli Baldissera

Apresentamos a terceira entrevista com curadoras e curadores negras, negros e indígenas brasileiros, ação que o Projeto Afro vem realizando desde dezembro a partir do mapeamento já publicado em nossas redes (veja aqui). Neste mês, convidamos o curador e artista Emanuel Monteiro para o centro da roda. Morador da cidade de Curitiba e professor no curso de Artes Visuais da Universidade Federal do Paraná, Monteiro nos conta como se deu o seu contato com as artes e a curadoria. Em uma conversa transitante entre vida, obra e atuação, entre deslocamentos territoriais e transdisciplinaridades artísticas, Monteiro apresenta sua poética e nos convida a pensar o futuro das artes.

Kênia Coqueiro, Coqueiras, 2019. Exposição “Ero Ere: negras conexões”. Foto: Graziele Girardi e Ana Paula Martynyszyn

Luciara Ribeiro: Como surgiu o seu desejo pela curadoria, e como você tem construído a sua trajetória no campo?

Emanuel Monteiro: Primeiramente, gostaria de agradecer o convite e dizer que fico muito feliz em participar do Projeto Afro. Sou artista e professor no curso de Artes Visuais da Universidade Federal do Paraná. Segui carreira acadêmica me tornando professor como um desdobramento da minha experiência como artista, já o meu interesse pela curadoria surge por uma demanda externa com muitas questões implicadas. Não me imaginava exercendo o ofício de curador até receber, em 2018, o convite de Leandro Gorsdorf (na época coordenador da PROEC/UFPR) para realizar em parceria com Hélio Menezes a curadoria de uma exposição sobre artistas negros no Paraná. Demos início às pesquisas mas o projeto segue em stand-by. Em 2019, as artistas Claudia Lara, Eliana Brasil, Fernanda Castro, Kênia Coqueiro, Lana Furtado e Walkyria Novais me fizeram o convite para realizar a curadoria da exposição do coletivo Ero Ero no Museu de Arte Contemporânea do Paraná, temporariamente sediado dentro do Museu Oscar Niemeyer. Minha primeira experiência realizando uma exposição como curador foi com a mostra “Ero Ere: negras conexões”, seguida da curadoria da exposição “Hemostasia” que aconteceu no Centro Cultural Municipal Parque das Ruínas, em Santa Teresa, no Rio de Janeiro em 2019. Atualmente, participo da curadoria da 67° edição do Salão Paranaense realizado pelo Museu de Arte Contemporânea do Paraná, juntamente com a artista Mila Jung, as curadoras Keyna Eleison, Fabrícia Jordão e Ana Rocha, diretora do MAC-PR.

Veja bem, para quem, a princípio, não tinha como um dos seus projetos ser curador, em um curto espaço de tempo passei a me envolver intensamente com o ofício. Acredito que minha trajetória como curador esteja intimamente ligada a uma demanda e uma situação evidente em Curitiba e no estado do Paraná: a ausência de artistas, curadores, professores, produtores culturais negros em lugares de destaque. Não sou somente o único professor negro no curso de Artes Visuais da UFPR, mas também o primeiro professor negro neste mesmo curso. No entanto, esta ausência não corresponde à qualidade do trabalho de tantos outros negros que também atuam na área das Artes Visuais em nosso estado. Essa constatação se torna mais evidente quando realizamos o trabalho de olhar para a constituição do campo para além da capital do estado. Neste sentido, ainda que com pouco tempo de atuação, uma preocupação recorrente que posso assinalar em minha atuação como curador é o desejo de expor e fazer circular trabalhos de outros artistas, para além do número restrito de nomes que encontro e reencontro muitas vezes expondo simultaneamente em galerias, museus ou centros culturais de Curitiba. Nesse cenário que se desenha, há uma crítica institucional que precisa ser feita.

Emanuel Monteiro, Torre de Babel, Torre de Marfim: nome próprio, 2019. Carvão, grafite, ponta-seca, resina vinílica e terra sobre papel, 225 x 220 cm. Foto: Leli Baldissera

LB: Um aspecto presente na carreira de muitos curadores negros e negras é o desenvolvimento de uma atuação múltipla, ou seja, atuando como curador, artista, pesquisador, educador, entre outras áreas. Como você vê isso? Essa multiplicidade também aparece em sua atuação?

EM: A lida com essa multiplicidade de tarefas é uma situação enfrentada com frequência pelo povo negro. Minha primeira referência é meu núcleo familiar, mas acho difícil não imaginar esta estrutura se repetir no campo das Artes Visuais em nosso país. Pensar questões de gênero, classe e raça nos ajuda a compreender esse aspecto presente na carreira de negros que atuam em nosso campo, como por exemplo, o exercício frequente de ter que conciliar os estudos com o trabalho, por vezes já no ensino fundamental, frequentemente no ensino médio, como também no nível de graduação e pós-graduação. É um privilégio para poucos poder construir uma trajetória com um foco muito específico quando essa escolha não oferece uma renda estável.

Nosso meio pode ser muito cruel. Muitos dos artistas ou curadores brancos que vejo desenvolvendo seus projetos com um foco claramente direcionado não parecem precisar se preocupar com necessidades básicas como, por exemplo, pagar as próprias contas. Ou, pelo menos, demostram vir de famílias que lhes oferecem situações econômicas mais favoráveis. No caso dos artistas, estes frequentemente gozam de espaços adequados para o desenvolvimento dos seus trabalhos. Tanto artistas como curadores mostram ter acesso a projetos de formação com subsídio, podem e realizam residências em outros estados ou mesmo em instituições no exterior e assim vão desenvolvendo suas carreiras com aparente naturalidade em seus êxitos. No caso dos curadores, frequentemente percebo recortes curatoriais em acordo com seu círculo de conhecidos, o que é compreensível ainda que questionável, uma vez que podemos acompanhar e compreender melhor o desenvolvimento do percurso de um artista que se encontra próximo geograficamente, portanto mais acessível. Mas essa proximidade e acessibilidade não raro, me parece, refaz outra vez o desenho de um campo fechado, ou diminuído, como se estivessem sob o exercício de uma força magnética que aproxima pessoas que comungam de hábitos em comum e sobrenomes europeus.

Vejo esta característica de ser curador, artista, pesquisador, educador, ou atuar em outras áreas, como uma possibilidade de sobrevivência em um meio hostil. Mas também compreendo esta característica como a possibilidade de assumir um posicionamento estratégico necessário. A necessidade de atuar em muitas frentes simultaneamente, se por um lado pode estar relacionada a fatores de desigualdade social que pesem no desenvolvimento da carreira do curador negro, também está relacionada com a possibilidade de estabelecimento de projetos em rede, onde não somente um sujeito atua em multitarefas, como também, operando em várias frentes têm a chance uma vez alcançado um lugar, de abrir espaço em todas essas frentes possíveis para outros artistas, curadores, educadores que partilhem de sonhos em comum, que sejam eles também sujeitos racializados.

Walkyria Novais, Do fundo da gaveta, 2019. Exposição “Ero Ere: negras conexões”. Foto: Graziele Girardi e Ana Paula Martynyszyn

LB: Desde meados dos anos 90, uma série de eventos têm marcado o sistema das artes com debates e propostas decoloniais, revisionistas e críticas. Os artistas, curadores e teóricos não brancos têm sido os grandes contribuidores para essa mudança de paradigmas e da hegemonia branca-elitista-europeia-judaíco-cristã no poder de definição dos rumos das artes. Como você vê esse momento?

EM: Penso que caiba aqui uma crítica institucional e a continuidade direta da resposta anterior. Se, por um lado, apesar da sobrecarga de trabalho, possa existir a possibilidade de abertura do campo, esta atitude muitas vezes pesa sobre a figura do indivíduo negro. Se as instituições realmente desejam operar uma reparação histórica, esta mudança não terá êxito com a realização de exposições e eventos pontuais, nem mesmo com a admissão de um profissional negro a trabalhar sozinho frente aos hábitos de uma instituição inteira. Primeiro, penso que os profissionais brancos precisam deixar de delegar para outros a responsabilidade e a tarefa de rever suas prerrogativas assumindo seu lugar no debate. Precisam, urgentemente, acompanhar as propostas colocadas sem que isso signifique a garantia e manutenção de seus postos. Penso que além de rever suas políticas de acervos e aquisição de obras, as instituições culturais precisam urgentemente rever suas políticas de admissão de profissionais não brancos em todos os postos de trabalho possíveis. Deste modo, o curador não branco poderia correr um risco menor de se tornar a figura isolada que projeta para o museu a imagem de uma tarefa de reparação feita, apaziguando superficialmente o conflito ainda pulsante.

Vejo esta entrevista como mais um dos resultados possíveis deste momento. Atualmente moro em Curitiba, mas nasci em Londrina, cidade localizada na região norte do Paraná. Sou graduado em Educação Artística (com habilitação em Artes Visuais) pela Universidade Estadual de Londrina. Realizei o curso no período noturno. Há um ponto que considero muito importante neste dado que é o fato das turmas apresentarem em sua configuração alunos de várias faixas etárias, e com uma presença expressiva de trabalhadores ou mesmo pessoas que já tenham constituído família e filhos para sustentar. Com isso, quero dizer que o universo do trabalho e as demandas da vida nunca se distanciaram do horizonte das minhas preocupações e que este é um dos campos de ação magnética que mais me interessa, para retomar a metáfora das relações de aproximação entre artistas e curadores anteriormente citada.

Vivi toda a minha vida em um bairro na periferia de Cambé, da infância até o momento em que precisei sair do estado para seguir os estudos. Não posso afirmar que debates e propostas decoloniais tenham feito parte constante do currículo acadêmico das disciplinas cursadas durante o ensino superior, mas faria injustiça se esquecesse que fui aluno da professora Dra. Marta Dantas, especialista em Artur Bispo do Rosário, ou do professor Dr. Marcos Rodrigues Aulicino que já nos anos de 2008 nos apresentou as obras de Rosana Paulino como também uma grande variedade de artistas visuais, músicos, atores e mesmo dançarinos negros. Sabendo que sou um grande fã de Blues, na época o professor Marcos Aulicino, hoje um grande amigo, foi quem me emprestou materiais sobre Muddy Waters e Howlin’ Wolf.

Acima, comentei algumas experiências ao longo da minha graduação como possibilidade de abertura para um conhecimento e uma visão de mundo que me parecem, muitas vezes, senão distantes, pouco autênticas quando surgem como preocupação no interior das instituições de ensino, centros culturais, exposições e outros eventos organizados por pessoas brancas nos grandes centros urbanos. Vejo que os eventos, debates e propostas decoloniais que têm marcado o sistema das artes com o protagonismo de artistas, curadores e teóricos não brancos têm contribuído para a desconstrução da imagem de um estado das coisas dadas como naturais. É impressionante, ainda que não seja surpreendente, pensar que os profissionais do meio, podendo circular o mundo para ver exposições e adquirir materiais de pesquisa dos mais variados, ao retornar aos seus cargos, tenham mantido por tanto tempo o mesmo modo de funcionamento das instituições, privilegiando as mesmas pessoas de sempre.

Lourdes Duarte, Série Vestígio, 2018. Cerâmica. Exposição “Ero Ere: negras conexões”. Foto: Raquel Camacho

LB: Recentemente, você organizou a curadoria da exposição “Ero Ere: negras conexões”, no Museu de Arte Contemporânea do Paraná, com obras de artistas do Coletivo Ero Erê, um grupo de mulheres artistas negras paranaenses. Como foi essa experiência?

EM: “Ero Ere: negras conexões” foi uma exposição de um coletivo com obras individuais das artistas onde buscamos manter a força da multiplicidade de perspectivas nos debates colocados, sem perder a força do conjunto. De modo geral, se impôs o debate sobre a memória. A memória das gerações de mulheres em famílias negras (Eliana Brasil, Walkyria Novais, Kênia Coqueiro), as memórias do corpo e da terra feito matriz em cerâmicas e livros de artista (Lourdes Duarte). Paisagens distantes e também a natureza vista muito de perto (Lana Furtado). O trabalho da memória e a tradição da arte têxtil, a materialidade dos fios, tramas e costuras evocando um universo afetivo junto ao saber tradicional (Eliana Brasil, Claudia Lara). O amplo e poético registro fotográfico das comunidades quilombolas do estado do Paraná (Fernanda Castro).

O contato com as artistas do coletivo foi e ainda é um grande aprendizado. Devo a elas um importante passo se respondo como curador neste instante, pois quando recebi o convite do coletivo, ainda que estivesse reticente frente à responsabilidade da proposta, a oportunidade se apresentou como uma proposta irrecusável, uma chance única na vida. De fato, a experiência comprovou essa impressão. Foi meu primeiro trabalho realizado como curador e, buscando oferecer o que tenho de melhor, apostei na minha experiência como artista modos de compreender os trabalhos realizados, os trabalhos em processo e os projetos idealizados especialmente para a exposição a partir dessa posição que ocupo no mundo. Tínhamos um cronograma apertado para colocarmos em pé uma exposição desse porte. Organizamos muitos encontros para que eu pudesse acompanhar o desenvolvimento dos trabalhos e elas pudessem acompanhar o desenvolvimento do conceito curatorial, o texto de apresentação, a espacialização das obras, as soluções expográficas, as ações de ativação da exposição no formato de oficinas e rodas de conversa.

Abertura da exposição “Ero Ere: negras conexões”, no Museu de Arte Contemporânea do Paraná (MAC-PR). Curitiba, 18 de julho de 2019. Da esquerda para a direita. Lourdes Duarte, Eliana Brasil, Lana Furtado, Kênia Coqueiro (frente), Walkyria Novais, Fernanda Castro, Claudia Lara. Foto: Kraw Penas / SEEC

LB: Como você vê o atual cenário da curadoria em Curitiba, e como é ser um curador jovem negro atuando nele?

EM: Moro em Curitiba desde 2017 e, de lá pra cá, percebo um interesse crescente em curadoria, principalmente por parte dos jovens estudantes de Artes Visuais. Imagino que isso se deva ao desenvolvimento dessa prática nos cursos de graduação em Artes Visuais da UFPR, UNESPAR e FAP. Sobre o atual cenário da curadoria em Curitiba, confesso ainda não conhecer muito bem os nomes, até por que a curadoria ainda é uma área de atuação nova para mim. Não tive tempo o bastante para me ater a essa questão. No entanto, tenho a impressão de que este cenário é composto por um número muito reduzido de pessoas com alguma ligação já estabelecida com um número reduzido de instituições, centros culturais ou galerias da cidade. Deste modo, atuar nesse cenário é um desafio, pois demanda atravessar todos os impeditivos anteriormente apresentados para acessar os espaços.

LB: Você poderia comentar um pouco sobre os seus projetos futuros?

EM: Neste momento, estou trabalhando em parceria com a Fabrícia Jordão na curadoria de uma exposição coletiva prevista para acontecer em São Paulo. Tenho um projeto de exposição coletiva voltado principalmente para o debate sobre desenho que se encontra engavetado esperando ser retomado. Após o término da tese, pretendo dar seguimento à pesquisa iniciada em 2018 sobre artistas negros no Paraná, bem como seguir com minha pesquisa como artista e meu trabalho docente.

LB: Você gostaria de acrescentar mais algum assunto ou comentar algum ponto?

EM: Não. Acho que me estendi além da conta nas primeiras respostas. Gostaria de agradecer mais uma vez pelo convite.

 

Emanuel Monteiro. Artista e curador. Professor no curso de Artes Visuais da Universidade Federal do Paraná. Doutorando em Poéticas Visuais pelo Programa de Pós-graduação em Artes Visuais do Instituto de Artes Visuais da UFRGS (2016-2020). Mestre em Poéticas Visuais pelo PPGAV/UFRGS (2015). Graduado em Educação Artística (habilitação em Artes Visuais) pela Universidade Estadual de Londrina. Vive e desenvolve seu trabalho artístico em Curitiba. Representado pela Galeria Mamute, em Porto Alegre.