CONVERSA COM CURADORES: LEANDRO MUNIZ

por Mayara Carvalho

1 de setembro de 2021

Chegamos a nossa sétima entrevista da série Conversa com Curadores. Neste mês, conversamos com Leandro Muniz, baseado em São Paulo (SP), que atua em diferentes áreas, como artista, curador e pesquisador, desenvolvendo estudos sobre as múltiplas atuações dos trabalhadores da arte no sistema atual. Além de organizar exposições e produzir artisticamente, Muniz tem no currículo passagens como repórter e crítico de arte e enxerga também nesse campo a relação com a curadoria. A entrevista integra a pesquisa Mapeamento de curadoras, curadores negras, negros e indígenas, de Luciara Ribeiro.

Vista da exposição Paola e Paulina (2018), de Yuli Yamagata, curadoria de Leandro Muniz. Foto: Reprodução

Mayara Carvalho: Como surgiu o seu desejo pela curadoria e como você tem construído a sua trajetória no campo?

Leandro Muniz: Estudei artes plásticas na USP e, ainda no início, percebi que me interessava mais pelos espaços de reflexão e debate crítico do que pelo frenesi que muitas vezes assola o meio da arte. Trabalhei como educador por uns dois anos, mas queria escrever e atuar na elaboração de programas e exposições. Além do desejo de um debate aprofundado e rigoroso, também logo cedo percebi meu interesse por criar relações entre diferentes obras, que é um dos exercícios básicos da curadoria, essa capacidade de “orquestração”. Fiz alguns projetos menores, mas a Disfarce foi a primeira exposição na qual tive que lidar com todas as questões institucionais, burocráticas, orçamentárias e de produção que envolvem o trabalho curatorial, para além da pesquisa. Então desde 2017 tenho atuado assim, ora ligado a instituições, ora desenvolvendo projetos independentes ou a convite de espaços alternativos e galerias. Por cerca de dois anos, em parceria com a Rafaela Foz, organizei o projeto Conversas no Breu, com duplas de artistas e/ou curadores e por mais de dois anos trabalhei na revista seLecT, como repórter e crítico de arte. Foram experiências que fazem pensar sobre curadoria de uma forma ampla, incluindo a curadoria da informação ou de debates, para além da organização de exposições e da interlocução com outros artistas.

Vista da exposição Torrente (2021), de Maria Lynch, curadoria de Leandro Muniz. Foto: cortesia do curador

MC: Um aspecto presente na carreira de muitos curadores negros e negras é o desenvolvimento de uma atuação múltipla, ou seja, trabalhando como curador, artista, pesquisador, educador, entre outras áreas. Como você vê isso? De que forma essa multiplicidade também aparece em sua atuação?

LM: O título do meu TCC foi Multitask e o texto é uma formulação das questões e impasses éticos, econômicos e metodológicos de atuar como artista e curador ao mesmo tempo. Não é propriamente uma análise, pois não era esse o caso, mas em algum momento espero desenvolver uma pesquisa mais rigorosa sobre esse assunto, pois ao longo da história da arte temos vários exemplos de artistas e curadores com atuações múltiplas. O Velásquez era conselheiro dos assuntos artísticos da corte, como aquisição de obras e vestuário; o Duchamp era o intermediátio das compras das esculturas do Brancusi para uma coleção em Nova York; ou seja, a atuação de artistas em diversas frentes do campo da arte é uma realidade desde sempre, mas essa diversidade muitas vezes não é considerada no debate sobre esses sujeitos e suas práticas. Usei o título em inglês porque, para mim, ecoava o uso generalizado dessa língua no mundo da arte em um momento de globalização, mas, em português, a palavra “multifuncional” talvez soasse ainda mais crítica, porque lembra a ideia de um eletrodoméstico de múltiplas funções, remetendo à reificação do trabalho, como bem me alertou o Tiago Mesquita na banca.

No caso específico dos agentes negros do campo da arte que desempenham diversas funções, podemos pensar em pelo menos três chaves de interpretação: 1) Vivemos em um mundo neoliberal em que a  precarização do trabalho nos obriga a realizar diversas atividades, por uma necessidade de sobrevivência. 2) Historicamente, artistas e pesquisadores vindos da diáspora atuam em diferentes frentes, como bem me mostrou o meu amigo Tarcisio Almeida, em uma conversa que tivemos exatamente sobre esse assunto. Heitor dos Prazeres, Bill Traylor, Madalena Reinbolt, Hélio Melo, Noah Purifoy e tantos outros sempre tiveram que desempenhar diversas atividades junto à sua prática artística, que muitas vezes não se limitava apenas a uma linguagem, transitando entre as artes visuais, a escrita ou a música, como também vemos hoje com artistas como a Ventura Profana e a Castiel Vitorino. 3) Em uma escala internacional, acho que diversos artistas e curadores têm criado trânsitos entre essas atividades -me ocorrem os nomes de Brook Andrew, Aria Dean e Jason Stopa-, tanto pelas contingências que falei antes, quanto por uma revisão crítica e propositiva dos limites entre essas práticas. Em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro é comum ver educadores que também são artistas, mas em cidades menores, com menos infraestrutura, é recorrente que o diretor do museu seja artista ou que os próprios artistas organizem as exposições e produzam textos. Então existe a dimensão exaustiva da precarização, mas também há um potencial crítico, propositivo e até disruptivo em transistar por essas diversas atividades, pois isso gera novos modos de operar e de pensar que não hierarquizam ou separam teoria e prática.

Vista da exposição I’ll be your mirror (2017), com curadoria de Leandro Muniz e participação de André Arçari, Lucas Naganuma, Renan Marcondes, Rivane Neuenschwander, Vitor Cesar. Foto: cortesia do artista

MC: Para você, sua prática artística é descolada da prática curatorial? Como você trabalha essa relação?

LM: A série Museu imaginário, que desenvolvo desde 2018, é o trabalho que mais claramente discute essa experiência. São desenhos de esculturas produzidas desde o século 20 nos mais variados contextos. Os desenhos são organizados por autor, categorias formais ou temáticas, vistas de ateliês ou de exposições e diferentes ângulos de uma mesma escultura. Esses trabalhos circulam como objetos, em publicações e nas redes sociais, mas também espero fazer um álbum de figurinhas, o que acrescentaria um problema a mais nesse trânsito entre criação, interpretação, seleção e curadoria que o trabalho coloca em questão.

Claro que há momentos em que estou mais dedicado a uma prática ou outra, tanto por contingências, quanto por interesse em projetos específicos. Existem metodologias e questões éticas que marcam diferenças entre essas atuações, mas temas, procedimentos e, principalmente, modos de operar, se reinformam, afinal, essas experiências e conhecimentos estão enraizados no meu corpo e se manifestam em toda minha prática.

Museu Imaginário #20 Ateliê da Eva (2020), de Leandro Muniz. Foto: cortesia do artista

MC: Variedade de materiais, usos não convencionais, dispersão e rupturas são aspectos que te interessam nos seus trabalhos artísticos. Esses elementos também aparecem em seus trabalhos de curadoria?

LM: Na exposição migalhas, no projeto Galeria O Quarto em 2019, existia uma experiência de dispersão, como você apontou. Eram só esculturas, dispostas sobre uma mesa e sobre o chão, em uma estrutura atomizada, que remetia à essa ideia de fragmentação do título. Todos os trabalhos também tinham um sentido de desgregação, em múltiplas associações entre esses resíduos do espaço doméstico, precarização econômica, esgotamento psíquico, percepção e atenção dispersas, etc.

Se formos pensar na minha prática como um todo, considerando as relações entre textos, curadorias, projetos e obras, acho que mais do que temas, materiais ou procedimentos, me interessam os modos de operar que atravessam essas práticas, que, acredito, envolvem um certo sentido de experiência direta, mas ao mesmo tempo reflexiva, crítica.

Vista da exposição migalhas (2019), curadoria de Leandro Muniz, participação de Cléo Doberthin, Débora Bolsoni, Ilê Sartuzi, Janina McQuoid, João Loureiro, Paulo Monteiro e Renato Pera. Foto: Filipe Barrocas

MC: Você faz parte do coletivo ali: arte livre itinerante, pode nos contar um pouco mais sobre esse projeto? Que relação você vê entre curadoria e arte educação?

LM: Se pensarmos em arte como construção de conhecimento, existe um lugar de educação tanto na produção das obras, quanto das curadorias, textos e em toda apresentação pública, como essa entrevista. Mas, no último ano, em especial, passei a me interessar muito pelo formato aula, porque, além da criação de um espaço de criação e discussão compartilhados, existem menos mediações do que em uma exposição, um texto ou um objeto. Isso possibilita um espaço de experimentação e de discussão crítica muito radical, ao mesmo tempo em que se criam afetos e vínculos.

O ali surgiu em 2018 como um projeto de escola de arte nômade em resposta à eleição do Bolsonaro e eu entrei no final de 2019 como assistente, mas logo estava cuidando da programação com a Lucia Koch. Para 2020, tínhamos planejado todo um programa baseado nos deslocamentos e encontros, mas veio a pandemia e criamos uma nova programação online de cursos, falas, oficinas e conversas. Este ano estamos mais interessados em fazer a produção dos participantes do projeto circular publicamente; temos parcerias com algumas instituições que dão bolsas para eles fazerem cursos livres e acho que a dinâmica mudou: passou a ser mais organizado de acordo com os interesses comuns e todos pensam o programa e os direcionamentos juntos, de forma coletiva.

Vista da exposição Disfarce (2017), curadoria de Leandro Muniz, com participação de Flora Leite, João Gg, Renato Pera, Rodrigo Arruda e Yuli Yamagata. Foto: Reprodução

MC: Desde meados dos anos 90, uma série de eventos têm marcado o sistema das artes com debates e propostas decoloniais, revisionistas e críticas. Os artistas, curadores e teóricos não brancos têm sido os grandes contribuidores para essa mudança de paradigmas e da hegemonia branca-elitista-europeia-judaíco-cristã no poder de definição dos rumos das artes. Como você vê esse momento?

LM: Acho que existem práticas que não se rendem à lógica moderna ocidental muito antes dos anos 1990, ainda antes da formulação do termo “decolonial”. Não sei se, na prática, o meio de arte é tão decolonial assim… Se pensarmos nas condições de trabalho dos curadores pretos, a maior parte é MEI, tem contratos temporários ou é convidada apenas para projetos pontuais, tendo pouca inserção na estrutura das instituições. As grandes galerias quase não têm artistas negros e, quando têm, me parece muitas vezes ser de um modo categórico, “tokenizado”.

Acho que temos avançado, mas a passos lentos. Também vemos surgir problemas novos, pois, na tentativa de “inclusão” de pessoas negras nesse campo que é tão excludente, as instituições e o mercado acabam gerando expectativas sobre o que é ou não a produção de uma pessoa negra ou indígena, além de novas formas de exotização, guetificação ou achatamento de tensões surgidas dessa experiência. No livro Saturation: Race, Art and The Circulation of Value há a formulação de perguntas importantes para esse debate, pensando as mudanças estruturais que o debate racial pode gerar.

Isso acho importante frisar: a discussão sobre raça e gênero não é apenas identitária, é estrutural. Não existe capitalismo sem racismo, logo, uma revisão funda sobre as desiguladades que vivemos e a má distribuição de poder implica desnaturalizar a suposta universalidade do pensamento branco, assim como pensar os marcadores da branquitude e seus impactos na estrutura da vida e dos nossos modos de pensar. Nesse sentido, me interessam os artistas, pesquisadores e curadores negros que buscam outras formas de construção do conhecimento nesse campo. Algo que autores como Darby English e Denise Ferreira da Silva, por exemplo, têm feito. Talvez repensar os limites entre prática artística e curatorial também esteja nesse escopo de propostas e revisões.

 

Leandro Muniz (São Paulo, 1993) é artista e curador, formado em artes plásticas pela USP. Foi repórter na revista seLecT entre 2019 e 2021 e já expôs em espaços e plataformas como o Museu de Arte do Rio, Artsy, Casa de Cultura do Parque, Sesc e Ateliê397. Foi curador das mostras Pulso (Bica, 2021), migalhas (Galeria O Quarto, 2019), Disfarce (Oficina Oswald de Andrade, 2017), entre outras. Seus textos podem ser encontrados em publicações como Relieve Contemporáneo, Terremoto e Revista Rosa. É indicado ao Prêmio Pipa 2021.