Jess Vieira, A cor do afeto, 2020-2021 (detalhe). Acrílica, 100 x 100 cm. Foto: Divulgação

CONVERSA COM ARTISTA: JESS VIEIRA

por Deri Andrade

8 de maio de 2021

Jess Vieira, A cor do afeto, 2020-2021 (detalhe). Acrílica, 100 x 100 cm. Foto: Divulgação

Com uma prática híbrida que transita entre a pintura, o digital ou a técnica de lã e bordado, a artista Jess Vieira tem se interessado, principalmente, em produzir imagens da mulher negra brasileira e suas representações. Em telas de grande formato nas quais o traço aquarelado é acentuado, Vieira dá vida a cenários que remetem à natureza e sua conexão com a vida não-urbana. Em busca de suas próprias origens territoriais e ancestrais, a artista nascida em Gama, DF, tem se destacado na cena contemporânea pelas pinturas que produz. Nesta conversa com o Projeto Afro, Jess Vieira nos conta como a arte surgiu na sua trajetória, seus temas e técnicas de interesse e como o meio digital pode ser um aliado de sua produção.

Deri Andrade (Projeto Afro): Você tem uma trajetória com formação em Letras e é pós-graduanda em Estudos Brasileiros pela FESP-SP. Poderia contar um pouco como se iniciou nas artes plásticas e como isso se relaciona com seus estudos?

Jess Vieira: Sempre tive prazer em criar o que quer que fosse manual, já quando criança gostava de inventar, cortar panos, criar roupas, inventar brincadeiras, fazer cenários no quintal da minha avó. Acredito que a arte sempre esteve pulsando, mas só dei vazão real a isso em 2018 estimulada a criar como processo terapêutico. Fui me soltando, experimentando. Criei para mim antes de criar para os outros, fui externando isso, e tive as fases de criar sob influência alheia. Na verdade, quem não está sob influência de algo, não é mesmo? A especialização em Estudos Brasileiros é um suporte para ver o mundo de outros pontos de vista, expandir, de certa forma, uma visão sobre essa terra aqui.

Jess Vieria, Ibejis, 2020. Acrílica. Foto: Divulgação

DA: Você nasceu em Gama, cidade satélite de Brasília, mas vive e trabalha hoje em Salvador, BA. Essa mudança pode ser refletida na sua obra na perspectiva de uma conexão com sua ancestralidade, como você cita?

JV: Acredito que não. Não sei se minha visão mudará. Meus avós e bisavós paternos e maternos (conhecidos) são todos de Minas Gerais (de Patos de Minas, entre Guarda-Mor e Vazante, de Presidente Olegário), então acho que quando penso em busca de ancestralidade, no meu caso, não me vem à Bahia. Acho que a Bahia, para mim, é um lugar em que eu me monto para um dia ser ancestral de alguém, sabe? Meio confuso, talvez, mas a Bahia para mim é um lugar em que achei alívio no caos que é viver, mesmo com as problemáticas da cidade, eu me sinto bem e viva. A vida faz mais sentido aqui. É tudo muito recente, então tem muita coisa que ainda não racionalizei, prefiro viver antes e tomar esses aprendizados com o tempo.

DA: Seu trabalho é pautado por um interesse em produzir imagens da mulher negra brasileira e suas representações. Como esse tema surge na sua produção e nas pesquisas que realiza?

JV: É muito representativo, pois tenho uma produção, atualmente, que é muito baseada na intimidade, então é uma fusão dessa intimidade, da minha história pessoal, memórias e pesquisas simbológicas, nos entendimentos conscientes de símbolos já presentes no inconsciente que gritam há tempos, ou sussurram, como queiram. A figura da mulher negra vem nesse fluxo consequente, assim como outras figuras que se repetem de tempos em tempos como o peixe, elemento que tenho retomado em minha pesquisa não só de imagem, mas com base na palavra, na formação que se cria entre palavra e imagem. Então, me levo hoje na simbologia do peixe, do mar, da mulher, da terra, do verde, do fluído, da criança, dos elementos que se conectam com os acontecimentos da minha vida, influenciados pelo externo em sentido local, global, familiar, as coisas vão se conversando e geram o que crio.

Jess Vieira, Sem título, 2021. Digital. Foto: Divulgação

DA: Além do interesse pela pintura em acrílica, e com uma produção que é marcada também pelo uso do digital, podemos observar um traço acentuado do seu trabalho no uso de cores específicas e desenhos figurativos que se aproximam da aquarela. De que forma essas duas técnicas conversam entre si?

JV: A aquarela foi minha técnica inicial, é comum que meu trabalho seja conectado a ela, mas não só. Hoje, eu me deixo muito mais livre para experimentar o que eu sinto que combina com o trabalho que quero fazer no momento. Por exemplo, estou fazendo um trabalho com lã e bordado. Acho que as técnicas conversam com o artista e ele faz com que elas conversem entre si, qualquer que seja.

DA: Muitos/as/es artistas têm encontrado no ambiente online um importante recurso para divulgação e comercialização de suas obras. No seu site, é possível encontrar alguns dos seus trabalhos disponíveis para venda. Como você observa esse cenário nas artes brasileiras?

JV: É uma libertação. As artistas não obrigatoriamente precisam de um aval de uma galeria ou quem quer que seja para abençoá-las como artistas. Uma artista é uma artista pois ela trabalha com arte. Desde que seja autoral, tudo é arte. Tem público para todo mundo. Tem um mundo inteiro para ser explorado, em todas as áreas artísticas, escrita, fotografia, dança, performance, pintura. TUDO. A internet tem várias questões sufocantes, mas foi o que permitiu que muitas boas artistas pudessem aparecer e trilhar seu próprio caminho, eu sou uma delas. A internet foi minha porta de entrada para viver com a profissão que gosto e trazer alívio (ou não, pois arte tem vários lugares) para esse mundo. Óbvio que ainda se passa por muitas questões problemáticas com a validação do que é ou não arte, mas isso é uma coisa tão ultrapassada e blasé, envolve muito mais gosto pessoal que qualquer outra coisa. E tem público pra tudo, tudo mesmo. Ou não estaríamos no caos político, sanitário e ético que estamos, né?

 

Jess Vieira, Sustento, 2019. Aquarela. Foto: Divulgação

DA: Uma das mostras que você participou foi uma parceria entre o Museu Afro Brasil e o Google Arts and Culture ao lado de outros jovens artistas. Você poderia comentar sobre como tem acompanhando a produção contemporânea de autoria negra no Brasil?

JV: Falamos aqui da internet, é um excelente meio de acompanhamento. Eu leio muito, então sempre estou atenta a artigos, matérias e vídeos a respeito de arte pelo mundo. Acho que vale entender que o que é contemporâneo é influenciado por outras correntes, então não divido muito uma nova cena da que passou, ainda mais no recorte de produção de pessoas negras, que muitas vezes foram invisibilizadas. Então, nos deparamos com artistas negros que não eram citados, mas têm uma produção expressiva para o que gosto de ver/pesquisar. Acho que o que importa, mesmo, é que a gente saiba usar bem o tempo com a arte, qual for, deixar que ela tire do íntimo o que a gente tem de necessário, seja bom ou ruim. E cada um encontra essas ferramentas que tem mais afinidade. Sinto falta de ir a exposições, teatros e bibliotecas, acho que esses três lugares sempre me abriram portas mentais que eu refinei pesquisando na internet. Mas seguimos na espera de vacina e saúde plena para poder desfrutar dessas buscas físicas.