RESPIRAR… ALÉM DA PALAVRA ESCRITA
por Mirella Maria
28 de novembro de 2020
É preciso respirar… Para além da palavra escrita! É urgente respirar, mesmo com a palavra já descrita, dita e enunciada. Palavra é poder, o qual se torna ferramenta motriz para modificar perspectivas, linhas de pensamento, caminhos fixados. Essas mudanças podem ser visualizadas com o uso recorrente da palavra decolonialidade, a qual se coloca a profundas revisões do que é chamado de estrutura colonial. O que se vê como enraizado na sociedade, pode corroborar para as desigualdades sociais, raciais e de gênero, entre outras. Para Aníbal Quijano, um dos intelectuais estudiosos da palavra, a diferença colonial, entre o colonizado/colonizador gerou e gera heranças que perduram na mentalidade de países latinos e caribenhos que passaram por processos de colonização. Sendo assim, esses países reproduzem a mentalidade de um colonizador: valorizar o outro em costumes e saberes. Para isso, o nome dado é colonialidade de ser e saber, nesta ordem. Com esses domínios, o poder econômico de países latinos e caribenhos fica à mercê de uma lógica estrutural colonial, no qual o colonizador determina as regras de trabalho e produção e, por conseguinte, o colonizado é hierarquizado a realizar as demandas. Se todas essas relações perversas estão no campo estrutural, a imagem lida com essas incongruências fica no campo da massificação, da padronização de visualidades, tornando assim toda a diversidade em um único ponto de vista.
Daí denota-se as urgências por revisões e modificações dessas relações estruturais, para que outras perspectivas estejam em destaque e sem interferências. Assim, voltamos à palavra decolonialidade. Quando essa palavra extravasa e alia-se ao que visualizado, vivenciado, ela reverbera o significado de rompimento com o colonial, fazendo uma sintaxe entre texto-imagem de maneira quotidiana, ampliada a mais pontos de vista (CUSICANQUI, 2019).
Na poética da imagem acima, apresento um diálogo que traz outra visualidade: o tal respirar. A pausa e a calma são construídas nas relações de memória e continuidade ao me fotografar junto aos meus descendentes de sobrenome Maria, no próprio corpo. A obra chama-se Ventania (2020), que faz referência a diversas mulheres de minha família e que perpassam pelo corpo a memória e o sobrenome. Eu, Mirella Maria, enquanto artista, percebi a necessidade de me reconectar com narrativas esquecidas ou soterradas pelo sistema colonial e busquei de maneira efetiva me politizar e conscientizar das minhas memórias, para enfim me marcar fotograficamente sobre a pele. Os corpos de antepassados, em registro fotográfico, destacam outro lugar de mim, exaltando narrativas positivas e ampliadas com outros pontos de vista nas artes visuais. A decolonialidade faz parte dessas construções. Outras percepções trazem em sua bagagem referências a estudiosos latinos, asiáticos, africanos e europeus, mas que se volta a um olhar para a América Latina e suas urgências. Os debates dialogam para outras perspectivas do olhar das estruturas econômicas, sociais e históricas. No campo da arte, da cultura e da educação a palavra vem também em um tom de urgência, para que uma solução, já vislumbrada no debate decolonial, seja colocada em prática para que revisemos o que ainda há de colonial no quotidiano brasileiro.
Em primeiro plano, é importante ressaltar que essa urgência por revisões estruturais advém de muitos pesquisadores-estudiosos-militantes que já denunciavam outros tempos e momentos e com outras palavras à práxis decolonial no quotidiano. Deslocando esse pensamento para o território brasileiro, faz-se necessário trazer teóricos locais que, sem precisamente utilizar o termo decolonial, ou “colonialidade”, seja possível encontrarmos essas ideias|práticas em seus textos. A exemplo disso, é importante e necessário referenciarmos Beatriz Nascimento, Lélia González, Clóvis Moura, Abdias do Nascimento, Guerreiro Ramos, Sueli Carneiro, entre outres, que se expressaram nos campos da educação, da cultura e da arte proposições diretas para relacionar teoria à práxis, dando destaque às revisões coloniais.
Assim frisou Sueli Carneiro, quando se refere o quanto as violações coloniais perpetuadas na América Latina, e especificamente no Brasil, ainda são base da nossa identidade nacional e que umas das formas de romper com essas estruturas é trazendo à tona as lutas unificadas de diversas instâncias, para que superemos as desigualdades e ideologias dos sistemas de opressão. A percepção que Sueli Carneiro aponta faz atenção direta e urgente à luta das mulheres negras, todavia, esse mesmo encaminhamento pode ser vislumbrado dentro das demandas decoloniais para outros questionamentos, como discussões das populações negras, indígenas, transgêneras, entre outres.
Em um outro plano, é comum observar que como toda boa teoria, que fundamenta bases com uma sistematização perspicaz e didática para que os espaços institucionais possam trazer a práxis de maneira eficiente, é importante denotar que os caminhos para a tal palavra decolonialidade necessitam de desconstruções mais precisas e reais. Discursos são necessários para a concepção do olhar de um lugar ou de uma pessoa. Todavia, como um discurso desalinhado de sua palavra escrita ou falada, sem a necessária reflexão e revisão de si no mundo atual, se torna práxis?
Aqui podem ser ilustradas instituições culturais, artísticas ou educacionais que adotam uma persona de si em diálogo com o mundo que se opõe às opressões e velamentos, mas que reproduzem apagamentos e silenciamentos, seja pela palavra, pela imagem, pelo som ou pelo corpo presente que trabalha e bate seu cartão. O que era bonito em seu discurso desalinha a caminho de um sistema operacional, que reluz às sombras de uma demanda econômica e estrutural. As omissões ainda persistem, mesmo com modelos bem estruturados sobre o que é ser decolonial. Ainda estamos no parecer, sem -ainda- vir a ser. Dando o nome devido às situações carregadas de racismo, sexismo, transfobia, entre outras opressões, essas estruturas ainda nos soterram, provocando imensos genocídios quotidianos em multidões sábias.
Seguindo o discurso pelo caminho do alinhamento, é possível vislumbrar de maneira assertiva práticas que se colocam como princípios de rompimento. Aqui, podem ser citadas práticas de alguns espaços culturais como, por exemplo, o Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand – MASP, que realizou mudanças significativas em seu corpo curatorial, o que contribuiu em sua expografia e programação. São exposições que trazem outras formas e perspectivas de se expor, aliando seminários, oficinas e formações para compor por outras visualidades nas artes. As exposições “Histórias Feministas: Artistas até 1900” e “Histórias Feministas: Artistas depois de 2000’’ contribuiu nesse sentido, ampliando olhares para produções de mulheres e com eventos associados à exposição.
A imagem apresentada acima faz referência ao evento inserido dentro da programação educativa e expositiva do museu, denominado MASP Professores. O espaço dedica-se a encontros formativos sobre arte e educação para interessades em geral. As discussões têm pautado perspectivas de ruptura e visibilidade de e para outras memórias e histórias da arte, acrescentando diálogos e pedagogias para quem participa das formações.
Aliado a essas formações, outro projeto em destaque é o Arte e Descolonização, organizado pelo MASP em parceria com o Afterall, um centro de pesquisa e publicação da University of the Arts London (UAL), o qual evidencia debates por outras práticas artísticas e curatoriais, e que faz juz à necessárias críticas aos legados coloniais. Em 2018 e 2019 ocorreram as primeiras edições, com seminários e publicações.
Pelo que é ilustrado e citado acima, diversos pesquisadores de dentro e fora do ambiente acadêmico enriqueceram o evento com seus lugares de respiro, apresentando teorias, práticas e outras possibilidades de decolonizar e estar acessível a todes.
Para apresentar outras instituições museais, que derivam suas origens como forma de enraizar proposições em diálogos diferentes e amplos olhares para corpos, memórias e produções, temos como referência o Muquifu (Museu dos Quilombos e das Favelas Urbanos). Criado em 2012, o espaço que localiza-se em Aglomerado Santa Lúcia, Morro do Papagaio (MG), que se dedica a resgatar e visibilizar a produção local numa perspectiva artística, educacional, social e racial. Assim, toda sua estrutura, desde a parte física até programações e exposições tem um cuidado em valorizar as memórias e resistências, revisitando as histórias orais, sonoras, visuais e sensoriais do Muquifu.
O museu é uma referência para o pensamento museológico e decolonial, pois coloca como narrativa central a história de pessoas que residiram ou residem na região e que deixaram representatividades de excelência, as quais são colocadas em destaque no espaço museal. Esse movimento é o nosso respirar, é o nosso olhar de transgressão com o que se coloca(va) como um único padrão de exibir e contar narrativas.
Seguindo no campo das organizações não governamentais, pode-se destacar os trabalhos desenvolvidos pelo Instituto Esperança Garcia* (SP), espaço cultural que realiza atividades de educação, cultura, arte negra e ações socioambientais. O território que faz cenário a essa potência é a região da Parada de Taipas, zona norte da capital paulistana, disponibilizando para a comunidade local acesso ao conhecimento, e que também realiza parcerias com Unidades Educacionais como espaço de formação constante para educadores e educandos, os quais fazem parte do território.
Torna-se potência evidenciar o que se tem de valoroso ao nosso redor, para apresentar o que os territórios carregam de saberes para que se compartilhe para outros espaços e lugares. Aqui, o compartilhamento, quando promove revisões de si e dos currículos anteriores, há um comprometimento com as mudanças pedagógicas e artísticas necessárias para gerar impactos nesta e em outras gerações.
E, repensando territórios e seus sujeitos, o que destaca não são só memórias e saberes de vida, mas também (re)ensina a transgredir, é a produção visual da artista Mitti Mendonça (RS).
Suas poéticas perpassam a revisão de imaginários, principalmente para mulheres negras, colocando os saberes manuais como mote criativo de potência para suas produções. Linhas e tecidos são alinhavados e bordados, exaltando belezas outras para nossas narrativas da arte. Na série Ouro de Mina Escura – Ela disse que reza por mim, a artista realiza intervenções multimídia com aplicações de folhas de ouro, bordados, costuras e desenho de uma mulher preta sobre um painel de algodão cru. A construção de si enquanto artista se amplia ao retratar também outras mulheres negras, utilizando materiais diversos que evidenciam um olhar para a manualidade, o que é feito na delicadeliza e transborda referenciais de outras construções e histórias na chave de uma estética decolonial.
Essa estética discutida no campo acadêmico por Rolando Vasquez, Zulma Palermo, entre outros, apresenta a necessidade de estender as nossas percepções sensíveis para óticas da América Latina e suas memórias. Mitti evidencia com muita perspicácia esse processo. Primeiro, a artista apresenta uma memória histórica em sua obra, apresentando sua viva ancestralidade. Há uma busca por evidenciar os caminhos da fé, religião e festividade de mulheres negras de Jaguarão, Arroio Grande (RS). Todo o arcabouço de existências é evidenciado pela “mina”, a preta mulher retinta no centro da obra, que traz o ouro com um alinhavar da potência do corpo e memória de si. As cores em paletas de dourado contribuem para visualizar essa poética.
A prática de construção de todo o processo contribui para que o olhar seja ressignificado no campo das artes visuais, dando dimensão a outros caminhares das histórias, mitigando o vir a ser por simplesmente ser. As práticas apresentadas trazem o respirar, que vai para além da palavra, materializando mudanças transgressoras na sociedade. Entretanto, é importante frisar que o ideal está no caminhar, que às vezes vem a passos parados. Daí o enfrentamento por outras realidades é uma ferramenta urgente para organização, criação de estratégias, revisões profundas de si e do outro, e exposição consciente para o mundo. Dessa forma, a teoria e práxis podem se colocar alinhadas, bem alinhavadas, e nos encaminhar para outros horizontes, em que a palavra, escrita, falada, desenhada ou sonhada, seja de fato nosso respiro diário.
*Esperança Garcia é uma coletiva de mulheres negras e periféricas que atuam na região noroeste de São Paulo, promovendo formações, palestras e oficinas artísticas, com foco na cultura negra.
Para acompanhar:
CARNEIRO, Aparecida Sueli. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. Tese de doutorado. Faculdade de Educação. USP. 2005.
CARNEIRO, Aparecida Sueli. Enegrecer o feminismo: A situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. LOLA Press n. 16, novembro, 2001.
CUSICANQUI, Silvia Riveira. A reflection on practices and discourses of decolonization, The south Atlantic Quartely.95-109. 2010
____El potencial epistemológico y teórico de la historia oral: de la logica instrumental a la descolonizacion de la historia. Voces Recobradas, Revista de Historia Oral, 8 (21): 12-22. 2006
GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, p. 223-244. 1984.
NASCIMENTO, Beatriz. A mulher negra e o amor. In: RATTS, Alex. Eu sou atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. 2006.
NASCIMENTO, Beatriz. O conceito de quilombo e a resistência cultural negra. In: RATTS, Alex. Eu sou atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. 2006.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, Eurocentrismo e América Latina. Em: A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO), Buenos Aires – Argentina. 2005