Presépio do Pipiripau no Museu de História Natural e Jardim Botânico (MHNJB) da UFMG. Foto: reprodução/Site MHNJB

POR UMA OBRA A LONGO PRAZO: DA CASA DE BISAVÔ BENÉ AO PRESÉPIO DO PIPIRIPAU DE RAIMUNDO MACHADO

por Ana Raylander Mártis dos Anjos

5 de outubro de 2023

Presépio do Pipiripau no Museu de História Natural e Jardim Botânico (MHNJB) da UFMG. Foto: reprodução/Site MHNJB

“Veio e vai desde os tempos mais transatos
Para outros tempos que hão de vir ainda!”
Augusto dos Anjos

 

Desde os primeiros anos da minha prática como artista, percebi que o tempo, particularmente aquele tempo que escapa da pressa, era essencial para esmiuçar a natureza das minhas propostas. Naqueles anos, ainda sem conseguir dar nome para esse fazer com a demora, fui buscando nas histórias de outras pessoas informações que me permitissem compreender melhor o que estava fazendo, fortalecendo essa tradição de projetos longos na arte. Ao voltar para a minha infância, encontrei na figura do meu bisavô materno a resposta para algumas perguntas ainda turvas. O forro da casa de meu bisavô, feito de bambu trançado, dava sinais e pistas para muitas dessas perguntas que vinham surgindo. E foi através dele que comecei a esboçar essa vontade de escrita sobre a demora e entender o tempo como um material de trabalho.

Construir uma casa nos tempos do meu bisavô não era tarefa fácil. Homem negro, vivendo numa área marcada pela mineração pré e pós-abolição, levantou o seu lar com esterco, barro, imaginação e sempre junto. Dentro deste lar, instalou o forro de bambu trançado que tanto guardo lembranças e emoções. Este forro é a primeira obra de arte que conheci em vida, o primeiro fazer criativo que me tomou, para além de qualquer explicação ou funcionalidade no mundo. Desde então, sigo em busca de outros projetos de vida que me façam sentir coisas únicas como sentia quando criança, olhando para o forro marrom no teto da casa do meu bisavô Bené.

O Presépio do Pipiripau é um desses projetos de vida que me emocionaram pela coragem e uso do tempo como material imprescindível no fazer. Criado por Raimundo Machado (1894-1984), o Pipiripau começou o seu longo processo de realização no ano de 1906, quando o artista tinha, ainda, 12 anos de idade. A obra, no entanto, só deixou de se modificar e expandir em tamanho e complexidade no ano de 1984, com a morte de Raimundo. Trata-se de um trabalho artístico que leva em consideração a intimidade entre criador e obra, comunidade e imaginação, tempo e realização.

Detalhe do Presépio do Pipiripau no Museu de História Natural e Jardim Botânico (MHNJB) da UFMG. Foto: reprodução/Site MHNJB

O Presépio sincroniza 586 figuras que se movimentam, distribuídas em 45 cenas. A obra conta a história do nascimento, vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo, mas não somente. O Pipiripau conta a história de Belo Horizonte, e porque não, a história de Raimundo Machado. A engenhosidade se mistura à história da capital mineira ao tomar como referência o lago do Parque Municipal, as Igrejas anteriores à capital, o moinho, as diversas profissões e costumes da época. Tudo que Raimundo viu, ouviu dizer ou sonhou um dia ser dito.

A obra foi crescendo com o passar dos anos, fazendo uso das tecnologias que Raimundo Machado descobria e tinha acesso. Nos seus anos de criação atravessou gerações e foi sendo moldado pela sua época. Do uso da gravidade para a criação de um chafariz à utilização de um pequeno gramofone para as primeiras figuras móveis. Da criação de uma máquina a vapor alimentada por lenha à instalação da energia elétrica na casa do Pipiripau. De um pequeno presépio improvisado em 1906, foi sendo construído ao longo das décadas uma importante e fundamental obra para a memória e cultura.

É importante contar que a família do artista se mudou a pé para Belo Horizonte, quando ele tinha dois anos. Ao chegarem na região, o projeto da nova capital mineira ainda estava em desenvolvimento, sendo um grande canteiro de obras. Com ruas ainda sem pavimentação, cheias de poeira e carroças movidas por bois e cavalos. O pensamento que ancorava o projeto da capital, idealizado à época, consistia em destruir o aldeamento anterior a Belo Horizonte, apagando assim, parte da história local.

Foi neste cenário que o Presépio do Pipiripau começou a ser construído. Mais precisamente na antiga Colônia Américo Werneck, região conhecida como Pipiripau. Raimundo conta, em entrevista, que conseguiu comprar um menino Jesus, que via de uma vitrine no comércio da cidade, juntando e vendendo garrafas de óleo de rícino. Cada garrafinha valia 20 réis, e o menino Jesus pequeno 400 réis. Ou seja, foi preciso juntar 20 garrafinhas vazias para conseguir o menino Jesus que tanto desejava. E conseguiu vendendo as garrafas para a farmácia Neves. Ao chegar em casa, Raimundo pegou uma caixa de papelão e colocou dentro o menino Jesus, repousado em cima de cabelo de milho, de limo e folhas. Em seguida, ele foi no brejo buscar argila, que utilizou para construir animaizinhos para o seu presépio. Sua mãe ficou tão contente quando viu o minúsculo presépio criado por ele, que resolveu deixá-lo sobre a mesa.

A história do Presépio do Pipiripau foi contada em jornais, livros, poemas, entrevistas e filmes, mas não a ponto de esgotar visões sobre a sua materialidade e natureza sensível.  Como patrimônio histórico e artístico nacional, o Pipiripau é uma fonte infinita de estudos, e carece de olhares mais generosos sobre a sua existência, para além dos vieses de arte popular ou naif. Para isso seria preciso aprendermos novas formas de olhar para o Pipiripau, para o forro já destruído da casa do meu bisavô Bené, ou tantas outras criações negligenciadas pela história. Obras como essas, complexas em termos de tempo, são ferramentas históricas para rediscutir o passado, mas também aprender sobre o presente e reposicionar o que é importante para nós no ato da criação.

O Pipiripau atravessou boa parte do século XX. Raimundo conta que a cada ano desenvolvia uma nova cena ou novos personagens para o presépio, sempre trazendo novidades ao público que visitava a sua casa a cada novo ciclo natalino. Conta também que sua mãe era bastante religiosa, sendo uma agente decisiva para a manutenção da fé local. De outubro até dezembro, em sua casa, não se pensava em outra coisa a não ser o Pipiripau. Com a morte da sua mãe, cessaram as festas junto ao Presépio, os foguetes e até mesmo as broas com o café na noite de natal. Entretanto as pessoas nunca pararam de visitar o Pipiripau.

Embora a obra parta da história de Jesus Cristo, e por consequência a história monoteísta, sua criação desorganiza essa dinâmica do mono ao compor, durante uma vida, inúmeras outras histórias que florescem e ganham espaço no Presépio. Na contramão do nosso presente, onde o regime vigente nos demanda respostas rápidas, entregas seriadas, numerosas e em um curto espaço de tempo, Raimundo entregou outra qualidade de tempo ao seu fazer. É isso que manteve e mantém a sua obra de pé, o caráter radical do tempo como material primordial do trabalho.

Mala, 2016, de Raylander Mártis dos Anjos. Exposição O COLETOR Brasil/Portugal. 10 x 300 x 600 cm. Apresentada na Reitoria da UFMG. Foto: divulgação.

Mala, 2016, de Ana Raylander Mártis dos Anjos. Exposição O COLETOR Brasil/Portugal. 10 x 300 x 600 cm. Apresentada na Reitoria da UFMG. Foto: divulgação.

Raimundo escolheu trabalhar com a demora, com a fé na criação. Desde menino se dedicou ao seu projeto de vida, o criativo. Para pensar e conhecer o Presépio do Pipiripau é preciso compreender a determinação de desenvolver a obra durante longos 82 anos, fazendo dele mais que uma engenhosidade produzida de pequenas partes que se movimentam. Pipiripau é uma ideia, que criou lastro para além do seu criador. Me atrevo a dizer que Jesus não é a figura central do Presépio. O coração do Pipiripau é a energia divina que Raimundo empregou no seu trabalho, uma devoção ao Presépio e a necessidade da criação. Nos percebemos contemplando os carneirinhos, os artesãos, a água, os musgos e o moinho como seres e entidades divinas.

Talvez, o Presépio do Pipiripau, comumente definido como arte popular, venha a ser a maior obra de longa duração produzida por um artista brasileiro. O Presépio nos emociona embalado pelo sonho de menino, que resistiu às frustrações, medos, precariedades e desafios, até a morte de seu criador. E segue nos emocionando com suas cores e vibrações, mesmo após a sua partida.

Com a presença da mãe de Raimundo, as pessoas iam ao Pipiripau por uma devoção religiosa, fazendo rezas e vigílias natalinas. Após o seu falecimento, o Pipiripau passou a ser visitado por curiosidade, uma virada de chave na forma como o mundo se relaciona com a obra. Uma virada do mono para o pluri, momento em que o Pipiripau deixa de narrar histórias que já existem, e passa a sustentar um novo cosmos. Um conglomerado de divinos que transcendem a religiosidade cristã, sem abrir mão dela. O Pipiripau ganha força vital, ganha corpo, pulmão, fígado, cérebro e coração. Dia após dia, mês após mês, ano após ano, cada vez maior. O Pipiripau diz coisas que só Pipiripau sabe dizer, e é preciso ir até ele para entender.[i]

[i] Este texto toma como fonte o depoimento do artista Raimundo Machado Azeredo, entrevistado pela professora Dra. Vera Alice Cardoso Silva, do Centro de Estudos Mineiros, FAFICH, da UFMG. A entrevista foi concedida em 28 de maio de 1984, e disponibilizada para consulta pela Biblioteca do Museu de História Natural e Jardim Botânico da UFMG em 24 de julho de 2023.

Veja a página de Ana Raylander Mártis dos Anjos no mapeamento do Projeto Afro.

A produção deste artigo é apoiada pelo Instituto Ibirapitanga.

Sobre a autora

Ana Raylander é artista, escritora e educadora. Graduada em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais e Arte e Multimédia pela Escola Superior Gallaecia. Foi contemplada com uma residência de pesquisa no MAM Rio (2021) e com o Prêmio de Residência EDP nas Artes, do Instituto Tomie Ohtake (2018). Tem textos publicados pelo MASP, Centro Cultural São Paulo, MUPA e Jornal Nossa Voz. Fez exposições individuais no Paço das Artes e outras instituições.

contato