Refino #2, Vídeo, 7'1'', 2017, de Tiago Sant’Ana. Ação realizada no antigo Engenho de Oiteiro, construção do século XIX, localizado na cidade de Terra Nova, no Recôncavo da Bahia. Foto: Reprodução/Site do artista

“DESEJO QUE TIVÉSSEMOS UMA POLÍTICA DE FOMENTO À PRODUÇÃO DAS PESSOAS ARTISTAS NEGRAS NO BRASIL”, TIAGO SANT’ANA

por Deri Andrade

13 de agosto de 2020

Refino #2, Vídeo, 7'1'', 2017, de Tiago Sant’Ana. Ação realizada no antigo Engenho de Oiteiro, construção do século XIX, localizado na cidade de Terra Nova, no Recôncavo da Bahia. Foto: Reprodução/Site do artista

Artista Tiago Sant’Ana fala sobre prêmio Soros Arts Fellowship e políticas culturais

Nas últimas semanas, a imprensa brasileira noticiou o resultado do prêmio Soros Arts Fellowship, com o nome do artista Tiago Sant’Ana figurando entre os 10 selecionados da bolsa de artes da Open Society Foundations, instituição filantrópica criada pelo magnata húngaro-estadunidense George Soros. No momento em que a cultura e as artes se situam em um complexo contexto de desmontes no Brasil, principalmente pela extinção do Ministério da Cultura neste atual governo, a atenção dos veículos de notícias brasileiros ao prêmio internacional não é por acaso.

O artista Tiago Sant’Ana. Foto: Reprodução/Site do artista

Além dos fatores político-culturais, a importância de noticiar que Tiago Sant’Ana foi o primeiro artista brasileiro a receber o prêmio perpassa diversas questões. Artista visual, curador e doutorando em Cultura e Sociedade pela Universidade Federal da Bahia, Sant’Ana desenvolve trabalhos que imergem nas tensões e representações das identidades afro-brasileiras para articular performances, fotografias, vídeos, entre outros. O artista baiano entende as dinâmicas coloniais que envolvem a produção da História e da memória, realizando alguns trabalhos no qual performa sua presença nesses lugares, “com gestos que remetem a quem de fato construiu aqueles espaços, a quem teve seus projetos de vida arruinados para o abastecimento da máquina colonial/imperial”, conta ao Projeto Afro.

O prêmio individual de 80 mil dólares, cerca de 400 mil reais, será utilizado pelos bolsistas para a realização de seus projetos pelos próximos 18 meses. Sant’Ana dará sequência a uma pesquisa em curso, que se constitui em uma série de trabalhos em torno das ruínas dos antigos engenhos de açúcar e suas comunidades. “Esse é um projeto que tem início em 2017, quando fiz a obra Refino #2. Eu encontrei um inventário da década de 1970 que apontava diversos engenhos de açúcar na região do Recôncavo da Bahia, onde nasci. Então, comecei a visitar esse lugares, mas não como lugares de fausto e riqueza, mas sim como sítios catalisadores da violência racial”, explica o artista. “O projeto prevê a sua continuação e ampliação com outras ações que estão vinculadas a um exercício de estranhamento da história oficial”, completa.

Composições simples para ouvir ancestrais, de Tiago Sant’Ana. Foto: Reprodução/Site do artista

A recepção ao prêmio também é um sintoma do atual contexto causado pela pandemia da Covid-19, ocasionando o agravamento da crise e ainda mais fragilização ao setor cultural. Enquanto sabemos de demissões em massa ocorridas nas principais instituições de cultura do país, da luta dos espaços independentes por sobrevivência, para citar alguns exemplos, aguardamos o repasse dos recursos previstos na Lei Aldir Blanc, sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro, que prevê auxílio emergencial para “manutenção de espaços artísticos e culturais, microempresas e pequenas empresas culturais, cooperativas, instituições e organizações culturais comunitárias que tiveram as suas atividades interrompidas por força das medidas de isolamento social”, segundo trecho da lei.

Apesar do auxílio para o setor durante o estado de calamidade pública que assola o país, o desmonte sistemático das políticas culturais em território nacional atinge diretamente o artista que está na ponta, muitas vezes sem amparo, como comenta Tiago Sant’Ana. “Esse prêmio é muito importante, pois vai permitir com que eu tenha uma estrutura para me dedicar à produção e difusão do meu trabalho, além de colocar a minha obra em um patamar menos local e mais internacionalizado. Geralmente, meus trabalhos tem um compromisso ético muito forte com a realidade de nós, pessoas negras, então, fico pensando muito na ressonância que o projeto apoiado pela bolsa pode ter”.

Da série Sapatos de açúcar, 2018, de Tiago Sant’Ana. Foto: Reprodução/Site do artista

Existe, ainda, a relevância de o prêmio ter contemplado um artista negro brasileiro, corroborando as discussões sobre os reais efeitos de mudança quando pensamos em mais diversidade. A maioria das pessoas, entre artistas, curadores, organizações culturais e pesquisadores, que recebeu a bolsa da Open Society Foundations neste ano, inclusive, são negras. “Talvez seja um bom indício para imaginarmos quem de fato pode mudar as engrenagens nas artes do mundo inteiro. Dificilmente quem goza de uma posição de privilégio racial dentro das artes vai ceder espaço para que outras subalternizadas possam acessar alguns lugares e bens. Então, está na hora de começarmos a mudar essa repetição e hackear os sistemas em nosso favor. Muitas pessoas ainda acham que não podem ou que não conseguem esse tipo de conquista porque, além de tudo, o racismo atuou fortemente na destruição da nossa autoestima, mas, sim, nós podemos”, enfatiza Sant’Ana.

A pesquisa do artista resultará em uma exposição individual a ser realizada em Salvador, BA, onde ele vive e trabalha atualmente. O prêmio proporcionará, neste caso, a realização de uma grande exposição fora do eixo Rio-São Paulo, refrescando as discussões acerca das barreiras regionais impostas pela arte contemporânea nacional, que não permite que um artista como Tiago Sant’Ana, com outros prêmios e mostras individuais e coletivas no currículo, consiga furar essa bolha e atingir um spotlight maior. “Isso se dá por diversos motivos, um deles é o projeto de hegemonia estética criado nesses dois lugares que cita. Ou seja, a produção do ‘eixão’ é o que serve de parâmetro para julgar a produção de outros lugares do país, que não gozam de uma mesma estrutura e acesso a bens culturais, por exemplo. Há um abismo imenso. Um abismo também visto dentro da própria crítica cultural que não ressona projetos de outras geografias do país”, conclui.

Após o fechamento deste texto, a Galeria Leme, de São Paulo, anunciou a representação de Tiago Sant’Ana em seu catálogo de artistas.

Conheça mais sobre o artista Tiago Sant’Ana aqui.