Mulher trans eliminada ou O Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais no mundo!, 2015, de Rosa Luz. Autorretrato. Foto: Divulgação

CONVERSA COM ARTISTA: ROSA LUZ E O PODER DO AUTORRETRATO

por Deri Andrade

20 de agosto de 2020

Mulher trans eliminada ou O Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais no mundo!, 2015, de Rosa Luz. Autorretrato. Foto: Divulgação

A fotografia é parte intrínseca do trabalho da artista Rosa Luz. Utilizando do autorretrato como um processo de autoconhecimento, no qual seu corpo é seu próprio objeto artístico, Luz encontrou nessa prática também uma forma de se expressar socialmente como mulher trans. Natural de Gama, cidade-satélite de Brasília, a artista cursou Teoria, Crítica e História da Arte na Universidade de Brasília, onde driblou os poucos recursos para construir suas narrativas e desenvolver suas pesquisas. Rapper, youtuber e comunicadora, seu trabalho multimídia questiona os paradigmas hegemônicos de uma sociedade racista e transfóbica, que já assassinou 89 pessoas trans no Brasil apenas no primeiro semestre de 2020, segundo dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra). Nesta conversa com o Projeto Afro, Rosa Luz fala sobre como a fotografia surge em seu trabalho, dos novos projetos e das ameaças que sofreu na mais recente campanha de ódio e intolerância promovida pelo terrorismo digital no país.

E Se a Arte Fosse Travesti?, 2016, de Rosa Luz. Autorretrato. Foto: Divulgação

Deri Andrade (Projeto Afro): Você possui algumas séries de autorretratos que utilizam da fotografia como parte de suas pesquisas. Como surgiram seus primeiros trabalhos fotográficos? Poderia falar sobre?

Rosa Luz: Eu comecei produzindo fotografia em 2013, especificamente autorretrato pois não tinha muito dinheiro pra investir em materiais de arte como tintas e pincéis, então decidi usar o meu celular e meu corpo como objeto de criação artística. Comecei no Tumblr em um projeto chamado Autorretratos de Ninguém, onde eu postava autorretratos em um processo de conhecer meu corpo e como eu gostaria de me expressar socialmente pensando gênero. Também fiz parte de um grupo de pesquisa de arte contemporânea e fotografia na universidade coordenado pela Prof. Dra. Ruth Sousa. Eu estava interessada em entender como os 10 segundos que programamos antes de tirar uma foto pode mostrar aspectos da nossa identidade a partir do subjetivo, considerando esses 10 segundos como um tempo pré-definido conceitualmente para entrar em um estado performático antes de posar para uma foto.

Autorretrato, de Rosa Luz. Residência artística na Merz Barn, Reino Unido, 2015. Foto: Divulgação

DA: Neste mês de agosto, o Projeto Afro tem dedicado sua programação a pensar a importância da fotografia também como ferramenta política de discurso social. Com uma obra engajada politicamente, principalmente como ativista da visibilidade LGBTQIA+, essa questão surge de que forma em seus trabalhos?

RL: Acredito no poder subjetivo de uma imagem, e que cada espectador pode ter uma leitura específica em relação a cada imagem, pois a leitura de uma obra de arte se dá de forma ampla e plural, muitas vezes conectando questões subjetivas e interpessoais. É aquela velha discussão de que a obra nunca termina quando a artista acaba de produzi-la, pois a crítica e história de arte é produzida a partir de pontos de vista específicos que podem ser sempre atualizados, revistos, refutados. Acredito que minha arte e meu corpo são políticos porque meu processo criativo acontece na rua, na interseccionalidade entre as artes visuais, música e tecnologia, questionando algumas estruturas pré-estabelecidas pela branquitude a partir de um processo criativo que coloca meu corpo enquanto protagonista da minha própria existência, e não como objeto, como vemos na obra de 1981 de Siron Franco, por exemplo, que é um homem cisgênero que pintou UMA travesti, mas o nome da obra é O Travesti, evidenciando que a história da arte e suas instituições são historicamente transfóbicas. Foi nesse contexto que, em 2016, produzi a fotografia E Se a Arte Fosse Travesti?, questionando o espaço das pessoas trans na História da Arte.

Antigamente, o quadro Preta Quitandeira se chamava Mulata Quitandeira, mas recentemente a equipe da Pinacoteca [de São Paulo] alterou o título da obra para que o aspecto racista em torno de sua construção pudesse ser revisto. Isso é importante porque muitos críticos, teóricos e historiadores da arte defendem que esses títulos racistas e transfóbicos deveriam continuar como estão, como parte da expressão da própria história, o que por si só legitima o racismo e a transfobia institucional que vivemos até hoje nas artes visuais.

Vale lembrar que as primeiras instituições de arte no Brasil surgiram no contexto da colonização, e os artistas viajantes saíam da Europa para pintar e catalogar tudo que fosse considerado estranho, exótico e não familiar para a cultura do branco. Estou falando de um mundo antes da fotografia onde a pintura também tinha o poder de legitimar a história e cultura de um povo, como é o caso da pintura de 1888 chamada Independência ou Morte [O Grito do Ipiranga], de Pedro Américo, que traz a colonização branca de forma romantizada, ao invés de pontuar a devastação das nossas terras, a morte de milhares de etnias indígenas, a escravidão e o surgimento do Brasil em terras de Abya Yala, de pindorama, dos povos originários num geral.

DA: Você comentou, em entrevista para a revista Zum em janeiro deste ano, que tem se dedicado mais na criação de vídeos e produção de músicas. Quais são os projetos que tem se envolvido atualmente? Poderia contar sobre?

RL: Estou produzindo música nova, editando novos episódios de #RosaViaja, uma web-série sobre minha participação no IVLP [International Visitor Leadership Program] em 2019 a convite da Embaixada dos Estados Unidos, e produzindo um web-documentário sobre artistas da quebrada que trabalham com freestyle. Tudo independente.

DA: Você tem acompanhado também outras/os/es artistas e fotógrafas/os/es contemporâneas/os/es? Se sim, quais? Poderia comentar um pouco?

RL: Tem o Matheus Alves (@imatheusalves) que faz uma luta através de narrativas pretas a partir da fotografia, o Griô (@grio.sp) que faz animações incríveis, a Ana Paula Santos (@itsanapaulasantos) que mescla dança, pole & soul, além de produzir fotos incríveis no Insta. A Ventura Profana (@venturaprofana) também acabou de lançar um disco incrível pensando a visualidade, a performance e a ressignificação do ritual a partir da música. Também curti o disco novo da Ebony (@baddiebony), o disco do 7K (@yungbuda7k) e tenho acompanhando o trabalho de várias manas que me inspiram como Brisa Flow (@brisaflow), Bia Doxum (@biadoxum), Bixarte (@bi_xarte), Zavlyn (@azavivaz), da poeta e empreendedora Nanda Fer Pimenta (@nandaferpimenta) e por aí vai…

DA: Há alguns meses, suas contas nas redes sociais foram alvos de comentários e ataques da extrema-direita. Além disso, você conta em seu canal no YouTube, Rosa, que sofreu ameaça de morte. Como você tem se articulado neste momento em que a arte e a cultura passam por episódios de censura no país?

RL: Foi difícil ter sido alvo de milícias digitais que se articulam para disseminar fake news. Eu fui acusada de ser uma bandida financiada pelo banco Bradesco, e essa mentira começou com robôs pré-programados por pessoas extremamente preconceituosas para disseminar mensagens de ódio. O Brasil é o país que mais mata pessoas trans, e a sociedade nos trata com ódio na maior parte dos espaços, então precisei desativar todas as minhas contas e buscar ajuda com organizações internacionais que atuam na defesa dos direitos humanos. Pois, o que começou como fake news virou realidade na medida que comecei a receber ameaças de morte de perfis reais. Felizmente, tive assistência da Front Line Defenders, da Access Now e da MariaLab, que me ajudaram com segurança digital e física.

Atualmente, voltei pro Distrito Federal, já que as ameaças de morte em meio a pandemia afetaram meu ritmo de trabalho em São Paulo, e estou vivendo um dia de cada vez. Uma travesti vive em média 37 anos no Brasil, país que aprendeu a nos odiar, e depois do que aconteceu comigo acredito que posso, de fato, ser assassinada em qualquer esquina, mas tenho feito terapia há dois anos e isso tem me ajudado a apenas existir sem culpa ou medo do amanhã. Afinal de contas, a culpa e o medo são estratégias brancas e cristãs para nos silenciar.