Ana Paula Lopes e Cadu Gonçalves. Foto: Ana Pigoso/Divulgação

CONVERSA COM CURADORES: ANA PAULA LOPES E CADU GONÇALVES

por Luciara Ribeiro

10 de dezembro de 2020

Ana Paula Lopes e Cadu Gonçalves. Foto: Ana Pigoso/Divulgação

Inaugurando a série de entrevistas do Projeto Afro com curadores, a partir do mapeamento de curadoras e curadores negras, negros e indígenas brasileiros, conversamos com a dupla Ana Paula Lopes e Cadu Gonçalves. Nesta conversa, Ana e Cadu refletem sobre o trabalho em colaboração, suas práticas decoloniais, a atuação múltipla, exercício observado em diversos curadores racializados, e os desafios de pensar e realizar curadorias para o campo virtual. Confira abaixo e acompanhe o site para as próximas entrevistas.

Luciara Ribeiro: Como surgiu o desejo de vocês pela curadoria, e como você têm construído suas trajetórias no campo?

Ana Paula Lopes: Meu desejo acontece desde a escolha da graduação em História da Arte: Crítica e Curadoria, com o objetivo de atuar na área com este título acadêmico. Até pensei, num período da graduação, em trocar de curso para o de História da Arte na Unifesp por uma questão econômica, mas desisti pois era curadoria o que eu realmente queria fazer, e desde então minha carreira vem sendo construída neste caminho. Sinto também que o diferencial nesse percurso veio através dos educativos, área na qual sempre trabalhei e onde minhas reflexões sobre o território curatorial tomam corpo, em pensar numa curadoria anticolonial e de articulação política, social e econômica. Ao mesmo tempo que minhas indagações refletem minhas vivências com a filosofia das religiões de matrizes africanas, como o Candomblé, da qual sou praticante desde 2015.

Cadu Gonçalves: Diferente da Ana, que é uma curadora em sua formação acadêmica e possui um conhecimento técnico espantoso sobre a área, eu venho do Bacharelado em Artes Visuais, me especializando em pintura.

Creio que o desejo pela curadoria veio com a inquietação de saber de todo o emaranhado de histórias e conceitos que existem até chegar à exposição de uma obra. Também gostava de saber sobre o que envolvia o pensamento dos meus colegas de turma durante as aulas no ateliê. Na faculdade, tive algumas disciplinas que abordavam a prática curatorial de maneira teórica e empírica. Deixei esse lado adormecido durante algum tempo e ele ressurgiu com o convite da galerista Janaina Torres para organizar uma exposição com artistas e obras do acervo da galeria, ocupando o espaço da Funarte-SP. Depois disso, me senti, além de desafiado, talvez mais seguro em me firmar nesta prática, que também encaro como uma prática artística, sempre com muito apoio e suporte da Ana Paula.

A curadoria na minha trajetória é resultado de vivências que se construíram ao longo da minha vida com a arte. Eu penso na curadoria como um kintsugi, que é uma prática japonesa de juntar cacos de porcelana de uma peça que se quebrou com o ouro, onde a junção fica aparente e adornada por essa cola dourada que mostra a história da peça. Para mim, esse ouro que cola as peças é a curadoria juntando todos os meus conhecimentos anteriores.

Ana Paula Lopes e Cadu Gonçalves. Foto: Ana Pigoso/Divulgação

LR: Um aspecto presente na carreira de muitos curadores negros e negras é o desenvolvimento de uma atuação múltipla, ou seja, atuando como curador, artista, pesquisador, educador, entre outras áreas. Como vocês enxergam isso? Essa multiplicidade também aparece em suas atuações?

Ana e Cadu: Nos desdobrar em múltiplas funções enriqueceu e enriquece nossa trajetória como profissionais, obviamente. Temos uma noção mais aprofundada do funcionamento de uma exposição por atuarmos tanto em educativos quanto em produção e montagem. Ter o conhecimento de como uma obra pode funcionar em determinado lugar do espaço expositivo só de saber o seu sistema de fixação ou desenvolver um plano B por conta das implicações logísticas de um transporte também é um fator que nos auxilia.

No entanto, não podemos deixar de lado o recorte de classe dessas múltiplas funções, já que muitos de nós ainda precisam tirar seu sustento dessas diversas atuações e desenvolver suas pesquisas nessas brechas de tempo entre um trabalho e outro. Isso não impede de realizarmos bons projetos, mas sabemos que um(a) curador(a) que consegue focar em apenas uma prática terá vantagens bem maiores ao usufruir de um tempo estendido para suas pesquisas. E sabemos quem são esses e essas profissionais e suas origens.

LR: Desde meados dos anos 90, uma série de eventos têm marcado o sistema das artes com debates e propostas decoloniais, revisionistas e críticas. Os artistas, curadores e teóricos não brancos têm sido os grandes contribuidores para essa mudança de paradigmas e da hegemonia branca-elitista-europeia-judaico-cristã no poder de definição dos rumos das artes. Como vocês veem esse momento?

Ana: Minha graduação e meus estudos iniciais partem desses autores, dessas reflexões e bibliografias brancas-elitistas-europeias-judaico-cristãs, como a da maioria das pessoas que se formam na área das artes, tanto que minha dissertação final é sobre a Jovem Arte Contemporânea de 1972, do professor Walter Zanini. Mas, quando saí da graduação e fui trabalhar numa galeria de arte, as indagações sobre o cubo branco para mim, uma mulher preta atuando dentro do mercado da arte, se tornaram mais frequentes, cada vez mais percebia o modo como esses conceitos europeus, brancos, cristãos e patriarcais foram impostos na minha formação e como precisava me desvencilhar disso, já que preciso dialogar e, ao mesmo tempo, romper com esses paradigmas impostos, de modo que as pessoas enxerguem como o espaço expositivo é uma construção moderna que reflete questões de eugenia europeia e do patriarcado. E umas dessas formas de ruptura aconteceu pelo meu trabalho escrito através de artigos e dissertações durante a minha graduação e atualmente no mestrado. Outro modo, foi a parceria entre eu e o Cadu, porque além de termos muitos pensamentos alinhados, compartilhamos um olhar reflexivo sobre o espaço expositivo, desejando que esse cubo branco europeu estéril seja um local que se expanda e se dilate para questões perenes ao objeto artístico.

Cadu: Essa série de eventos, seja no campo da arte ou da política, ajudaram a perceber-me como um indivíduo racializado (não-branco, mestiço de família interrracial), já que perceptivelmente não sou uma pessoa preta e, obviamente, isso carrega muitas vantagens sociais. Minha experiência de mundo é diferente da experiência da Ana, por exemplo. Porém, é nesse lugar de um indivíduo racializado que habitam minhas vivências. Ao longo de minha vida, principalmente a profissional no campo das artes, é notável que mesmo um corpo passível de ser mimetizado pela branquitude é posto em prova constantemente. No meu caso, há sempre uma desconfiança de minha capacidade intelectual e de protagonismo nos projetos e funções que eu exerço, mesmo me apresentando como ou portando um crachá enorme, os agentes brancos desse meio ainda veem pessoas racializadas num campo de subalternidade ou de subserviência. Creio que, com base no contato com essas pautas – decolonialidade nas artes, colorismo, entre outros –, convivências que justamente me fizeram ter uma percepção mais ampla do espaço que ocupo – com as queridas Diran Castro (artista e educadora), Janaina Machado (pesquisadora atualmente no corpo educativo da Bienal de SP), entre outres – que me percebo mais atento aos sinais, que me são mais “sutis”, porém não menos violentos.

A essas e esses teóricos, artistas, profissionais e amigues agradeço a acolhida e peço licença.

Croqui de expografia da exposição A Face oculta da Lua, com curadoria de Ana Paula Lopes e Cadu Gonçalves. Foto: Divulgação

LR: Vocês têm atuado em dupla em diversos projetos. Como surgiu a ideia de ser uma dupla de curadores e como tem sido essa experiência?

Ana e Cadu: Antes de falarmos de nosso encontro profissional, seria interessante falar nas inúmeras coincidências em nossas trajetórias profissionais e pessoais, que permeiam desde um campo espiritual e astrológico (ambos do signo de escorpião) até os altos graus em nossas vistas, que nos levam a enxergar bem mal sem os óculos. Também iniciamos e concluímos nossas graduações no mesmo ano (2011-2014), por meio de programas do governo federal para estudantes de baixa renda, como o ProUni, no caso do Cadu (Belas Artes), e Fies, no caso da Ana (PUC). Nesse meio tempo, trabalhamos em alguns educativos, como o da 30ª Bienal de São Paulo (2012), onde nos conhecemos; além da produção de exposições, acervos, pesquisas e galerias de arte onde cuidamos da parte de pesquisa e relações institucionais, Cadu na Janaina Torres Galeria e Ana na Simões Assis, atualmente. Vale pontuar também que nossa maior aproximação se deu através do 1º Experiências Negras no Instituto Tomie Ohtake, em 2018. Até hoje, falamos sobre a potência de projetos como esse para a criação de redes profissionais e também afetivas entre profissionais não brancos das artes.

Acreditamos que essas noções, que vão da educação ao mercado de arte, nos aproximam e dão estofo para pensarmos nossos projetos de maneira mais ampla. Além de nossas pesquisas e afetações que envolvem muito relações com a violência no gesto construtor do trabalho, a construção conjunta e aos olhos e com o público do que entendemos como exposição, como as experiências dos anos 1970 do professor Walter Zanini no MAC-USP e de Frederico Morais no MAM-Rio e, mais recentes, como de Yacouba Konaté na Dak’art 2004, no Senegal.

Os pontos comuns e a junção de nossas pesquisas, além de toda a bagagem profissional, fazem com que nos entendamos de maneira muito rápida, com um raciocínio prático, no qual um complementa o outro. Isso não nos impede de trabalharmos de maneira individual, mas nossas trocas são muito frutíferas e trabalhamos bem em dupla.

Educativo em atuação na exposição “Mãe Preta” na Funarte-SP, coordenado por Ana Paula Lopes. Foto: Divulgação

LR: Recentemente, vocês realizaram a exposição virtual “Travessias Nômades”, que reuniu diversos artistas de diferentes regiões do Brasil. Como foi essa experiência de pensar uma mostra para o campo virtual? Vocês poderiam nos contar um pouco sobre esse projeto?

Ana e Cadu: “Travessias Nômades” tem sido um projeto muito especial para nós. O convite foi feito pelos fundadores da KA Arte e Cultura, Carolina Velásquez, Bianca Zecchinato e Eri Alves, que por meio desse coletivo/empresa fazem consultorias e desenvolvimento de projetos educativos para exposições. Também nos conhecemos durante a 30ª Bienal.

O projeto tem se desenvolvido desde maio deste ano, no qual tudo foi decidido de maneira bastante horizontal e conjunta, do nome da exposição até o formulário de inscrição des artistes.

Neste caso, não trabalhamos em dupla, já que somos em três curadores convidados, responsáveis por eixos específicos: Ana no Eixo Espiritual, Cadu no Eixo Decolonial, Patrícia Araújo, curadora pernambucana, no Eixo Sensível, além dos fundadores da KA no Eixo Rede. Foi aberto um chamamento virtual onde os e as artistas inscreviam o trabalho no eixo que mais se relacionasse com a sua pesquisa. Essa escolha para nós não foi uma tarefa fácil, mas ao mesmo tempo foi muito interessante ter contato com trabalhos de artistes de diversas cidades e momentos da carreira.

Recebemos inscrições de artistas de diversos estados, embora tenha havido uma predominância da região sudeste. Algo interessante de pontuar é que não estamos falando de um sudeste que compreenda o eixo Rio-São Paulo, mas também de pessoas dos “interiores” dessa região. A curadoria também prezou muito pela seleção de artistas não brancos, que são maioria na exposição.

Nosso desejo, a todo momento, é encontrar todes participantes da exposição, ver as obras fisicamente, conversar e trocar pessoalmente, porque estamos falando de produções muito profundas e comprometidas. Apesar de tudo, as dinâmicas do projeto nos fizeram mais próximos dos participantes, através das lives e reuniões internas, que descentralizam a curadoria e nos colocam também num campo de acompanhamento dos trabalhos.

O exercício de selecionar os trabalhos pelas imagens, e continuar com esse recurso também na exposição, é um exercício de fé da curadoria e de confiança des artistes em nós. O recurso virtual para as exposições é algo novo e estranho, por assim dizer, mas possui um lado bastante positivo que é um acesso mais livre e verdadeiro às mostras.

LR: Vocês poderiam comentar sobre os seus projetos futuros?

Ana e Cadu: Desde o começo da pandemia, temos alguns projetos engavetados para alguns espaços culturais específicos, precisamos ter um tempo para revisitá-los e colocá-los em prática. No começo de 2020, recebemos menção honrosa no 1º Prêmio Adelina de Curadoria pelo projeto expositivo “A Face Oculta da Lua”, coletiva pensada com os trabalhos de Paola Ribeiro, Jucélia da Silva, Ana Giselle e Carolina Velásquez, pelo qual temos um carinho muito especial e estamos trabalhando em diversos editais para que seja realizado.

Também estamos pesquisando bastante algumas artistas como Aïda Muluneh e Marga Ledora… Vamos ver onde essas pesquisas irão tomar corpo.

Vista da exposição “Pequenos Vestígios de Melancolia” na Funarte-SP (2019), com curadoria de Cadu Gonçalves. Foto: Divulgação

LR: Vocês gostariam de acrescentar mais algum assunto ou comentar algum ponto?

Ana e Cadu: Gostaríamos de convidar a todes para conhecerem Travessias Nômades, que ficará um tempo em cartaz pelo site da KA, além das conversas que tivemos com os e as artistas participantes ao longo do projeto. No dia 1º de dezembro foi lançado o catálogo virtual com os textos que escrevemos para a exposição.

Nos dias 23 e 24 de setembro deste ano também assumimos, durante 24 horas, a página do @__etcetc no Instagram, que é um projeto criado por Carollina Lauriano e Raphael Escobar. Lá, vocês poderão encontrar curadorias muito interessantes, feitas principalmente por artistes, e a nossa Presente Limítrofe/Reparação do Desejo, com artistes do Brasil e de outros países, pensando essa imagem inicial da obra como um desejo de algo físico e da rede social como um campo de conexões sem fronteiras físicas. Fica o convite para que conheçam o projeto e a nossa curadoria por lá.

Queremos parabenizar a todes pelo projeto e agradecer pelo convite. É uma sensação gratificante e honrosa estar neste mapeamento ao lado de profissionais que admiramos e que, de alguma forma, estamos ajudando a construir uma nova história da arte brasileira.

Ana Paula Lopes (São Paulo-SP, 1983) é bacharela em Arte: História, Crítica e Curadoria pela PUC-SP (2011-2014) e aluna mestranda em História da Arte pela Unifesp. Foi curadora de “O Desejo do Desenho” de Alexandra Carlie (2019). Trabalhou nas galerias White Cube, Mendes Wood DM e Jaqueline Martins. Possui textos publicados na Revista Terremoto (México), e Experiências Negras (publicação digital do Instituto Tomie Ohtake), foi produtora de “Paisagens Expandidas”, individual de Sandra Mazzini no Museu Nacional da República (Brasília) e coordenou o educativo da exposição “Mãe Preta” na Funarte-SP.

Cadu Gonçalves (São Paulo-SP, 1991) é bacharel em Artes Visuais pelo Centro Universitário Belas Artes de São Paulo (2011-2014), pelo Prouni. Também possui uma atuação como pesquisador, curador independente, produtor e educador. Trabalhou nas galerias Baró e Janaina Torres. Foi curador de “Pequenos Vestígios de Melancolia” na Funarte-SP (2019).