A curadora Glauce Santos. Foto: Marco Serrão/Divulgação

CONVERSA COM CURADORES: GLAUCE SANTOS

por Luciara Ribeiro

2 de fevereiro de 2021

A curadora Glauce Santos. Foto: Marco Serrão/Divulgação

Dando continuidade a série de entrevistas do Projeto Afro com curadoras e curadores negras, negros e indígenas brasileiros (veja aqui o mapeamento), neste mês, conversamos com a artista plástica, pesquisadora e curadora paraense Glauce Santos, um dos destaques recentes da curadoria no Brasil. Glauce propõe em seu trabalho reflexões marcadas por religiosidades afro-brasileiras, os processos de experimentação artística e os movimentos territoriais no país. Tendo o Norte como centralidade, a curadora nos convida a deslocar o olhar e rever definições que propagam colonialidades.

A curadora Glauce Santos. Foto: Jean Ribeiro/Divulgação

Luciara Ribeiro: Como surgiu o seu desejo pela curadoria, e como você tem construído a sua trajetória no campo?

Glauce Santos: O desejo pela curadoria surgiu após ter participado de uma exposição coletiva. Eu estava na faculdade de artes plásticas, éramos um grupo, unimos forças para concorrer em um edital, conseguimos ganhar a pauta. A instituição designou um curador para nos acompanhar, durante o processo presenciei atitudes e decisões das quais não concordava, vi uma artista também negra receber críticas que eram uma sessão de humilhação. A necessidade de querer diminuir, de excluir, estava presente o tempo todo, éramos sete artistas no total, sendo seis artistas negrxs: 04 Homens negros + 02 Mulheres negras + 01 mulher branca = Total de sete (07) artistas. Eu fiquei refletindo o tempo todo que eu poderia fazer aquele trabalho de curadoria, que eu tinha capacidade para fazer, pensava o tempo todo no que faria, e no que seria diferente.

Desde então, passei a prestar muita atenção em processos de curadoria. Um fato importante para a minha tomada de decisão foi ter aceitado, em 2015, o convite de Mestre Arthur Leandro ou Tatá Kinamboji (In Memorian) para participar do projeto “Nós de Arunda-Artistas de Terreiro”. Começo fazendo parte da comissão de curadoria coletiva, e posteriormente, assumo a curadoria com o artista-curador Jean Ribeiro. Com a morte do Tatá Arthur em 2018, o projeto ficou sem acontecer. Jean então me convida para realizar uma exposição em homenagem a Arthur, que aconteceu em novembro de 2018. A exposição “Nós de Aruanda” só volta um ano depois, em novembro de 2019, atendemos ao pedido de Mametu Beth (atual responsável pelo projeto) e realizamos a 7ª edição da exposição.

Essa trajetória tem sido construída devagar, mas com bases sólidas. Não posso deixar de falar da companhia que tenho nessa caminhada, Jean pulou no barco comigo, sem medo, enfrentamos tempestades, maresias fortes, mas não desistimos em nenhum momento, costumo dizer que “mar calmo não faz um bom marinheiro, no meu caso uma boa marinheira”. Sempre estamos em busca de estudar, lendo, escrevendo, fazendo cursos, conversando e procurando ver a produção de artistas, alguns nos procuram para orientação. Passamos a incluir em nossas exposições, principalmente, os excluídos do sistema de artes de Belém, artistas afrodescendentes.

Exposição “Nós de Aruanda-Artistas de Terreiro” (2019) no Centro Cultural da Justiça Eleitoral-CCJE/PA. Curadoria de Glauce Santos e Jean Ribeiro. Foto: Carla Coutinho/Divulgação

LB: Um aspecto presente na carreira de muitos curadores negros e negras é o desenvolvimento de uma atuação múltipla, ou seja, atuando como curador, artista, pesquisador, educador, entre outras áreas. Como você vê isso? Essa multiplicidade também aparece em sua atuação?

GS: Sim, aparece, a multiplicidade é presente na minha atuação, vejo como um processo característico nosso, de pessoas afrodescendentes, tudo é dificultoso para artistas, curadores e curadoras negras e negros. Sou artista, curadora, professora e pesquisadora, mas também faço muitas outras atividades, já trabalhei com cenografia, cenário, figurino, estamparia em artesanal em tecido com carimbos xilográficos, costuro um pouco também, tenho até um curso técnico em cenografia. Comecei, de fato, profissionalmente na curadoria, com comprovações e recebendo certificados, na exposição “Nós de Aruanda”, depois vieram várias outras exposições com outros grupo e pessoas. Nesse processo todo, acabei fazendo de tudo, organizando, produzindo, acompanhando artistas, curadoria, texto, divulgação, expografia e até montagem já fiz.

Nunca tive a oportunidade de ser apenas artista, sempre tive que ministrar aulas em instituições, projetos e escolas. Para me sustentar, comecei a dar aula em casa para as crianças da vizinhança, para pagar meu cursinho pré-vestibular, minha mãe é negra, veio de uma realidade muito pobre, empregada doméstica a vida toda, não tinha condições de pagar um cursinho, lamentava muito por não conseguir me ajudar, então tive a ideia de dar aula. Passei em dois vestibulares de faculdades públicas, estadual e federal, escolhi a UFPA, onde me formei na licenciatura plena em educação artística com habilitação em artes plásticas. E foi sempre assim, é o que sei fazer, dar aula de arte, ensinar, escrever, palestrar, repassar conhecimentos que adquiri ao longo do tempo na academia e pesquisando.

LR: Desde meados dos anos 1990, uma série de eventos têm marcado o sistema das artes com debates e propostas decoloniais, revisionistas e críticas. Os artistas, curadores e teóricos não brancos têm sido os grandes contribuidores para essa mudança de paradigmas e da hegemonia branca-elitista-europeia-judaíco-cristã no poder de definição dos rumos das artes. Como você vê esse momento?

GS: O sistema das artes sempre foi branco, elitista, classista, machista, racista, senti isso na pele, mesmo sendo uma negra de pele clara, sempre incomodei. Se hoje sou aceita, foi muita luta. Os eventos que marcam propostas decoloniais nas artes são marcos históricos, é o divisor de águas que nos incentivam, força vital para nossas trajetórias. Recordo a primeira vez que vi uma obra de  Ayrson Heráclito de perto, era uma foto da performance em que o artista, e também pai Ogã no candomblé,  faz um bate folha. A fotografia impressa em grande formato foi exposta  no Arte Pará, acho que era 2004 ou 2005 não recordo, a quebra de paradigmas, os rompimentos, para alguns foi um choque ver um artista afro-religioso no maior salão de artes da região norte do Brasil, o caos é algo que se fez, e se faz necessário, isso me motivou, me senti incluída. Respondendo à pergunta, esse momento é algo extremamente importante para nós, para o futuro, e que devemos continuar firmando nossa presença no sistema das artes brasileiro.

Obra de Leonardo Pontes, Oxalá e Iemanjá, na exposição “Nós de Aruanda-Artistas de Terreiro” (2019) no Centro Cultural da Justiça Eleitoral-CCJE/PA. Curadoria de Glauce Santos e Jean Ribeiro. Foto: Carla Coutinho/Divulgação

LR: No seu trabalho, você estabelece conexão entre os espaços expositivos e as religiosidades afro-brasileiras. Como esse diálogo se desenvolve na sua prática?

GS: Faço parte de uma comunidade tradicional, um terreiro de candomblé da nação Jeje Savalu na Amazônia, sou abiã, suspensa para o cargo de Ekedji (mulher não rodante). E sim, essa conexão é imediata, é a relação entre as obras, o espaço a ser ocupado e as religiosidades afro-brasileiras. Fiz uma exposição individual como artista, o tema era “No trajeto das águas, sobre o sulco dos rios”, resultado de minhas vivências e memórias, ganhei uma bolsa de pesquisa em artes do governo do estado do Pará, através do Instituto de Artes do Pará. Sempre pensei em montar a exposição em um museu de Belém que fica de frente para a Baía do Guajará, para o rio, e  desde a assinatura do contrato eu busquei esse espaço, a minha cabeça estava voltada pra lá, só conseguia visualizar a exposição lá. Solicitei, via ofício, bem antecipado, 10 meses antes, mas a equipe do Instituto insistia em querer me colocar em outras galerias. Na verdade eu sentia que eles queriam esconder a minha exposição e tinham medo da repercussão, tratava-se de uma instalação com tecidos, conchas, som de maré, caracóis, gravuras e um vídeo com imagens de várias marés. Costumo dizer que o universo conspirou a meu favor, o ofício foi aprovado faltando um mês para o resultado final, o sagrado feminino de Oxum e Iemanjá contigo nas obras foi exposto no museu Casa das 11 janelas, ponto turístico e lugar frequentado pela elite branca paraense. Senti a pressão, senti o preconceito, os olhares, tentavam disfarçar, mas foi necessário ter esse enfrentamento. A proposta decolonial da minha exposição venceu, superando as expectativas negativas, alguém precisava dar o pontapé inicial nesse espaço.

Nas exposições da “Nós de Aruanda”, onde atuo como curadora, juntamente com o curador Jean Ribeiro, que é Ogã confirmado no candomblé da nação Jeje savalu na Amazônia, sempre conversamos muito sobre espaços expositivos. A ideia desde o início do projeto é para que aconteça em espaços oficiais do circuito de artes em Belém, iniciando um longo processo de inserção e legitimação de vários artistas, e mesmo a exposição sendo em uma galeria de arte, seguimos a ordem do xirê, as obras que ficam perto da porta de entrada sempre são as que fazem citação, referência a Exú, abrimos com o grande comunicador do universo, que abre os caminhos. Quando fazemos o projeto para determinada galeria, já vamos fazendo as conexões das obras com o espaço.

Obra de Glauce Santos, Presentes, na exposição “Entre o rio e o mar” (2020) na Galeria Benedito Nunes. Curadoria de Glauce Santos e Jean Ribeiro. Foto: Marco Serrão/Divulgação

LR: A região Norte é reconhecida no imaginário e senso comum brasileiro pela presença da Floresta Amazônica e por ter maior presença de populações e sociedades indígenas. Como você enxerga essa percepção sudestina e sulista da criação de uma imagem do Norte? Qual o papel da curadoria e do seu trabalho em relação a isso?

GS: Essa imagem do Norte, que o Sudeste e Sul possuem de nós, é falta de informação, desconhecimento, e também uma forma de nos apagar. A população afroamazônida, o homem negro e a mulher negra do estado do Pará, têm as suas especificidades, aqui existem pessoas negras de pele escura ou clara com cabelo liso, e também com pele clara ou escura e cabelo ondulado, cacheado, crespo, black power, uma vasta tonalidade de peles negras. Aqui, temos traços que se confundem com os das etnias indígenas, por isso nos chamam de morenas e morenos, de pardos, existem músicas falando de morenas, que Belém é a cidade morena, na verdade é afroamazônida. A palavra que melhor nos define é afroamazônidas, as pessoas que vem a Belém se espantam com a quantidade de pessoas negras, porque tem essa ideia do exótico. Sempre digo que exótico é o que não é belo, inventaram uma palavra para classificar a nossa beleza, nos chamar de feios seria muito deselegante, mal educado, me recuso a ser exótica, sou afroamazônida.

A curadoria entra em cena desconstruindo essa visão desinformada. Sempre nas programações das exposições fazemos rodas de conversa, palestras, ação educativa, oficinas, chamamos pesquisadores e pesquisadoras para falar, mães e pais de santo, mulheres de terreiro, juventude, mulheres do feminismo negro, ativistas, movimento negro. Até mesmo dentro dos povos de terreiro há várias Áfricas, várias águas ou nações, o próprio nome já diz matrizes africanas, sempre procuro agregar a diversidade, para que todos se sintam representados e representadas, são especificidades que a maioria da população desconhece, o exemplo disso é que sacerdotes que trabalham com a pajelança, com espíritos de índios encantados, com pena e maracá, podem participar da exposição, nosso papel é levar conhecimento ao público. A linha curatorial da exposição abrange a diversidade de matrizes das diversas Áfricas presentes na Amazônia.

Obra de Lucinha Pessoa, Boneca Oxum, na exposição “Entre o rio e o mar” (2020) na Galeria Benedito Nunes. Curadoria de Glauce Santos (na foto) e Jean Ribeiro. Foto: Marco Serrão/Divulgação

LR: Você poderia comentar um pouco sobre os seus projetos futuros?

GS: Nesse momento, estou na organização de um projeto de curadoria, uma exposição somente com mulheres negras, um projeto que vai ocupar o museu Casa das 11 janelas, em 2021, vai ficar por três meses, com uma programação online, que será disponibilizada nas plataformas digitais e nas redes sociais. Estou trabalhando nesse projeto com prazo de entrega ainda esse mês. Também na correria da conclusão da dissertação de mestrado, momentos finais. Pretendo fazer prova para doutorado em 2021, na área de curadoria. Sem bolsa fica difícil se manter longe e, por esse motivo, vou fazer processo seletivo por aqui mesmo, na UFPA em Belém.

LR: Você gostaria de acrescentar mais algum assunto ou comentar algum ponto?

GS: Sim, agradecer e parabenizar vocês pela iniciativa, pesquisa, empenho e força, me disponibilizo para cooperar no que precisar. Um forte abraço, desejo muito axé pra vocês.

Glauce Santos é artista visual, curadora, pesquisadora, professora, tem Licenciatura Plena em Educação Artística com habilitação em Artes Plásticas-UFPA. Curso Técnico em CENOGRAFIA na Escola de Teatro e Dança da UFPA. É especialista em Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Escola-IFCH-UFPA. Mestranda em Artes-PPGARTES-UFPA, em fase de conclusão. Participou de várias exposições coletivas e individuais, sendo selecionada, convidada e premiada. Tem obras em acervo na Fundação Curro Velho-FCP, Belém-PA. Casa das Onze Janelas, Belém-PA. Galeria Theodoro Braga, Belém-PA. Galeria Graça Landeira-UNAMA., Belém-PA. Galeria Benedito Nunes, Belém-PA. Centro Cultural da Justiça Eleitoral-CCJE/PA. Elf Galeria, Belém-PA. Acervo da coleção de Milton Kanashiro. Acervo da coleção de Jorge Alex Athias, e Grupo de Estudos Afroamazônico-GEAM/UFPA. Realiza curadorias de exposições, escreve textos curatoriais, ministra aulas, cursos e palestras.