Curadora Horrana de Kássia Santoz. Foto: Christina Rufatto/Pinacoteca de São Paulo

CONVERSA COM CURADORES: HORRANA DE KÁSSIA SANTOZ

por Mayara Carvalho

12 de janeiro de 2023

Curadora Horrana de Kássia Santoz. Foto: Christina Rufatto/Pinacoteca de São Paulo

Chegamos a mais uma entrevista da série Conversa com Curadores. Neste mês, conversamos com Horrana de Kássia Santoz, que é graduada em Artes Visuais pela Universidade Federal do Espírito Santo (2011) e curadora de pesquisa e ação transdisciplinar na Coleção Ivani e Jorge Yunes na Pinacoteca de São Paulo. Em sua trajetória, já atuou em diferentes frentes como arte-educadora, mediadora, artista e curadora, enfatizando a importância dessas áreas andarem conjuntamente. Além disso, passou por diferentes instituições, como a Fábrica de Cultura Jardim São Luís e o MASP, e fez parte do júri na 11ª edição da mostra 3M de Arte e no 8º Prêmio Artes Instituto Tomie Ohtake — Edição Mulheres. A entrevista integra a pesquisa Mapeamento de curadoras e curadores negras, negros e indígenas que pode ser acessada aqui.

Mayara Carvalho: Como surgiu o seu desejo pela curadoria, e como você tem construído a sua trajetória no campo?

Horrana de Kássia Santoz: Acho que diria quando surgiu meu interesse em curadoria. Sou formada na Universidade Federal do Espírito Santo em Licenciatura em Artes Visuais e atuo, desde 2007, como arte educadora. Entrei na universidade em 2006, com 21 anos, sem grandes pretensões à carreira como professora de artes. Acredito até, com certo medo e preconceito dessa definição, mas foi durante os quatro anos de curso, trabalhando e me aproximando de museus, galerias, escolas e coletivos que pude conviver com essa titulação com mais tranquilidade. A curadoria era um outro lugar. Apesar de ter atuado em grande parte dos espaços culturais e museus da capital do Espírito Santo, a curadoria era um espaço de atuação praticamente desconhecido, para não dizer inóspito, para a maioria dos meus colegas de curso. No início da graduação, a curadoria era algo reservado aos professores e aos poucos alunos que tinham proficiência em inglês e conseguiam ler os teóricos e produzir seus primeiros ensaios e textos críticos. Raros eram os textos do campo da arte educação que dialogavam e elucidavam questões sobre a curadoria enquanto prática e pensamento, mas foi com eles que me apeguei até o fim da graduação.

Para pensar nesse “quando”, eu preciso voltar ao meu primeiro estágio, como mediadora na exposição “Arte para criança” em abril de 2007, no Museu Vale, em Vila Velha. Foi a primeira vez que estive em um museu como profissional e público, que pude assistir uma montagem e me apaixonar inteiramente pelo que acontece antes de uma exposição abrir para o público. Também foi quando ouvi os termos “mediador” e “arte-educação” e comecei a entender o papel das escolas formais no diálogo com esses espaços. Enfim, foi um baita choque. Mudou tudo o que eu imaginava da minha formação e atuação.

Daí, em agosto de 2009, tive uma experiência como artista durante o estágio no Museu de Arte do Espírito Santo Dionísio Del Santo.  Fiz parte do grupo de mediadores da mostra “Espectador em trânsito”, com curadoria de Martin Grossmann, então diretor do Centro Cultural São Paulo (CCSP). A exposição contava com um conjunto de trabalhos em vídeo, vídeo-instalação, vídeo-performance, muito diverso e estimulante.

Depois disso, oficialmente, a minha primeira experiência como curadora foi em maio de 2010, dentro do II Seminário Nacional de Africanidades e Afrodescendência, realizado pelo Estudos Afrobrasileiros (NEAB) da UFES e pela Fundação Ceciliano Abel de Almeida. Acredito que a minha experiência como arte educadora – e uma boa dose de audácia, confesso – naquela altura foi o que me levou a ser convidada a realizar “LUTO”, assim mesmo em caixa alta. Foi a primeira vez que organizei um cronograma de montagem, selecionei artistas, instalei trabalhos, escrevi texto de parede, pensei com o designer a arte do cartaz…

A “LUTO” aconteceu no hall da biblioteca central do campus da universidade, em Goiabeira. A experiência de ver tantas montagens e desmontagens no MAES, e ter amigos dedicados, me deu coragem para realizar essa mostra que tanto falava da experiência de artistas de arte urbana, fotógrafos, performers, como materializavam suas visões em relação ao racismo e à luta antirracista.

Foi por causa da mostra “Espectador em trânsito” que tive contato com o trabalho “Entre-Margens” e com o artista André Parente, que, por minha teimosia e insistência, apadrinhou a minha primeira mostra, a “Inapreciável”, realizada em novembro de 2010 na Galeria Homero Massena. A mostra foi idealizada e realizada pelo Coletivo Mimosas Pudicas – é o nome científico da planta dormideira -, que também era tema da instalação “Itatiaia Dreams” de autoria da artista Juliana Morgado, também exposta na mostra “Espectador em trânsito”. “Inapreciável” foi o flerte mais intenso que tive com a curadoria, com a pesquisa em videoinstalação e performance, ainda que estivesse num coletivo, onde o sentido de autoria era mais diluído. Mas foi uma deeeelícia ser artista. Recomendo muito. rs

Por isso que digo que não foi como, mas quando a curadoria se tornou uma área de interesse. É inevitável olhar para essas primeiras experiências e vê-las em diálogo com a minha atuação como arte-educadora. Tem um “andar junto”, uma complementaridade entre essas áreas em praticamente tudo que realizo.

MC: Um aspecto presente na carreira de muitos curadores negros e negras é o desenvolvimento de uma atuação múltipla, ou seja, atuando como curador, artista, pesquisador, educador, entre outras áreas. Como você vê isso? De que forma essa multiplicidade também aparece em sua atuação?

HS: Tem um aspecto muito curioso da atuação no campo das artes visuais que é a constituição de profissionais multitarefas devido a uma escassez de oportunidades de trabalho e posso falar com certa facilidade do cenário capixaba daquela época. Vi muitos colegas atuando, simultaneamente, como, artistas, produtores, captadores, assessor de imprensa, montador, museólogo, designer, curador, etc. Para fazer acontecer” e sobreviver, invariavelmente criava-se um jeito de fazer, ficando colado nos técnicos que vinham de outros estados para as montagens, escrevendo “na cara dura” para museus de outros estados para pedir orientações com museólogos, montadores, curadores. Aprendia-se muito mais no fazer, improvisando, e ainda vejo que as coisas não mudaram tanto. O que me alegra é saber que as pontes de formação são mais generosas e gentis hoje.

Outra questão é a concentração de recursos e equipamentos culturais entre RJ, MG, SP, o que também acaba empurrando os estudantes e jovens profissionais para se lançarem em oportunidades fora do estado. Bem, foi o que aconteceu comigo, mas sei que não é uma regra.

Luciara Ribeiro em gravação do video-documentário “Narrativas e Territórios em disputa: Investigações sobre os sistemas das artes” (2022), que fez parte da exposição “Atos Modernos”. Foto: Divulgação

MC: A curadoria, arte, educação e acessibilidade parecem estar bem presentes na sua carreira, qual a importância que você vê de operar com essas frentes em relação?

HS: Como escreveu Manoel de Barros, “escrever é como carregar água na peneira…” e curadoria pra mim tem sido isso mesmo. A minha forma de ler e me ver no mundo passa pela poesia, pela música, pelas artes visuais, claro, mas também passa pelos encontros, pelo afeto, pela escuta, por isso acredito muito num sentido de atravessamentos e de aproximações, das competências, das habilidades que tenho a meu alcance hoje, e que favorecem a construção da minha rede de trabalho. Escrever é um ato de muito poder. Ter a nossa reflexão e a visão de mundo registrada e acessível é algo magnífico e de um compromisso enorme, com aqueles que acessam nossa produção. Como essa entrevista, sei que essas palavras podem chegar muito longe, por isso quero cuidar para que seja um tanto um relato como um apoio a quem se interessa pelo campo. Pensando sempre na equidade de direitos, é extraordinário poder lançar mão dessas ferramentas e abrir diálogos com os mais diversos públicos que acessam meu trabalho, ou qualquer outra produção artística em que esteja envolvida.

Também acredito que, o que há de singular na minha forma de ler o mundo certamente se amplia com o olhar de outra pessoa, mas para isso preciso estar disponível para acolher e ressignificar essas ferramentas e ativá-las nos espaços que ocupo.

MC: Desde meados dos anos 90, uma série de eventos têm marcado o sistema das artes com debates e propostas decoloniais, revisionistas e críticas. Os artistas, curadores e teóricos não brancos têm sido os grandes contribuidores para essa mudança de paradigmas e da hegemonia branca-elitista-europeia-judaíco-cristã no poder de definição dos rumos das artes. Como você vê esse momento?

HS: Contribuir com esse canal é o sinal mais evidente do alcance das nossas agendas e narrativas. O trabalho realizado por tantos colegas não brancos, tanto dentro como fora das instituições, me estimula muito e sei que formamos uma rede de trabalho bastante consistente.

Um dado importante, lembrando do meu primeiro estágio. Falar da nossa presença em espaços institucionais ainda é um desafio em se tratando do racismo estrutural que aplaca nossas vivências e a nossa produção. Mas, sinto um orgulho imenso quando encontro colegas que consolidaram sua produção em outros circuitos e estabeleceram novos centros. A estratégia é essa e temos muito a usufruir desse nosso circuito.

Olinda Tupinambá foi uma das artistas do programa de comissionamento “Atos Modernos”, com curadoria de Horrana de Kássia Santoz, na Pinacoteca de São Paulo. Foto: Divulgação

MC: Recentemente, você lançou a mostra do projeto “Atos Modernos”, na Pinacoteca de São Paulo. A partir de comissionamentos e ações interdisciplinares, a exposição ocupou as duas sedes do museu. Como se deu o processo de concepção do projeto? Poderia comentar sobre?

HS: “Atos modernos” é um encontro, um convite e uma provocação. Digo isso após dois anos de elaboração, discussão e estruturação de um projeto que pudesse contemplar a pesquisa enquanto prática artística. Também me interessava me colocar nesse processo que, como arte-educadora e curadora, também usufrui de um espaço de produção privilegiado, estudando os acervos da Pinacoteca e da Coleção Ivani e Jorge Yunes, contribuindo com a pesquisa de cinco grandes artistas e pesquisadores. Se podemos pensar como as instituições de conhecimento e produção intelectual, como os museus, as universidades, como legado da modernidade, como podemos discutir as nossas presenças na história que vemos?

Com “Atos modernos” quis enfatizar que 2022, sendo marcado pelo centenário da Semana de Arte Moderna de 1922, bicentenário da Independência do Brasil e a eleição presidencial, todas as oportunidades de deslocamento da discussão estética, política e de identidade deveriam ser aproveitadas e amplificadas. Este foi primeiro programa de pesquisa e de comissionamento artístico, em parceria entre as duas instituições e teve o objetivo de evidenciar o trabalho em rede e o diálogo multidisciplinar, apontando questões concretas como: Quais histórias estão presentes? Quais acervos nos constituem? Quais epistemologias prevalecem? Ao refletir sobre o contexto colonial e pós-colonial, estruturantes da história do Brasil, é possível afirmar que a modernidade existe sem colonialidade? Como tal questionamento nos encontra, confronta e afeta hoje? ​

Para formular conceitualmente o programa, também precisei pensar no grupo que participaria e o que eu gostaria de evidenciar com essa proposta. Por isso, contar com a parceria e a confiança de Charlene Bicalho, Mitsy Queiroz, Luciara Ribeiro, Castiel Vitorino Brasileiro e Olinda Wanderley Tupinambá foi o gesto mais importante dessa construção, que aí se somou com textos de autores que sempre desejei construir diálogos, como: Rosane Borges, Aníbal Quijano, Stuart Hall, Jota Mombaça, Ana Paula Simioni, Victoria Noorthorn, Elvira Espejo Ayca, Moacir dos Anjos, Aylton Krenak, Ruth Bliss Philips, etc. Também contei com a participação de Raphael Escobar, Cidinha da Silva, Naine Terena, Bruno Pinheiro, Maria Clara Araújo e Carmen Silva, formando o grupo de interlocutores que trouxeram outros desafios para trajetória e alcance do programa.

Publicação de “Atos Modernos”, lançada em 2022. Foto: Divulgação

Acredito que “Atos modernos” foi uma estratégia, que inaugurou uma reflexão importante na história das instituições e na minha. Tivemos a exposição, homônima, que aconteceu entre junho e julho de 2022, ocupando a Pinacoteca Luz e Pinacoteca Estação e lançamos em dezembro a publicação física de “Atos modernos” e também uma versão digital, em inglês, disponível nos sites da Pinacoteca e da Coleção Yunes. Considerando que, parte da função social dos museus é estimular a criatividade e propagar o conhecimento para todos os públicos, um programa de comissionamento se torna de suma importância para que esses recursos sejam acessados por pessoas e grupos racializados, corpes dissidentes que ainda hoje seguem apartados da história oficial do Brasil.

Todos os cinco artistas do programa tiveram obras ingressando no acervo da Pinacoteca. Alguns por doação, outros pelo programa de patronos da Pinacoteca, assim, articulamos todo processo com a relevância que esse gesto declara. Esse é um momento de imensa importância para a Pinacoteca, enquanto instituição formativa, e claro para o desenvolvimento da minha carreira e desses artistas. Sinto-me orgulhosa por contribuir com esse movimento e de ser parte dessa história.

Peça de divulgação do projeto “Atos modernos”, com curadoria de Horrana de Kássia Santoz, na Pinacoteca de São Paulo. Foto: Divulgação

MC: Em um tipo de parceria pouco utilizada no Brasil, a Pina se juntou à Coleção Ivani e Jorge Yunes para a contratação de uma curadora que ficaria à frente do projeto, sendo você a escolhida para essa ação. Como tem sido o trabalho nessa dinâmica? E como você tem percebido o atual cenário institucional cultural?

HS: A Coleção Ivani e Jorge Yunes (CIJY) é um grande enigma. É o maior acervo particular que já vi e trabalhei, e arrisco dizer que é a maior coleção privada no Brasil. Iniciada nos anos 1970 pelo casal Ivani e Jorge Yunes, a coleção guarda um discurso inequívoco sobre a importância e o afeto pela arte através do colecionismo. Com um conjunto de esculturas, desenhos, pinturas, livros, relíquias, prataria e uma inumerável coleção de curiosidades, são várias coleções formando a coleção. Apresentando raridades da história da literatura e da arte no Brasil, a CIJY abrange desde o período pré-cabralino, dos povos originários, até a primeira metade do século 20, incluindo peças de diversos povos do continente africano e de afrodescendentes. A partir de 2018 houve um novo empenho de organização e catalogação do acervo com base em critérios museológicos, e hoje a CIJY apresenta diversos núcleos e eixos narrativos em sua expografia, inspirando a pesquisa acadêmica e a geração de conhecimento a partir do acervo – o que também amplia a capacidade técnica e de pesquisa, criando uma vasta documentação e oportunidades de extroversão da coleção por meio de comodatos e doações.

Estrear essa parceria, já tão comum em instituições estrangeiras, é desafiador. Tanto pelo prazo da minha atuação dentro dessa parceria, como para circunscrever uma aproximação ainda maior entre as coleções. Temos muito a ganhar com essa relação da Pina com a CIJY, por isso espero poder dar continuidade a esse e a outros projetos.

Detalhe da obra de Castiel Vitorino Brasileiro, Prosperidade são lembranças e escolhas (2022), apresentada em “Atos Modernos”. Foto: Divulgação

MC: Você poderia comentar um pouco sobre os seus projetos futuros? 

HS: Quero continuar acreditando e atuando, embora saiba que os próximos anos serão desafiadores para nossa área. Um dia desses o artista Mitsy Queiroz me disse o seguinte: “Sobre a descrição, trago à lembrança um ponto do Mestre Junqueiro ‘(…) os trabalhos da Jurema todo mundo quer saber, como o segredo da abelha que trabalha sem ninguém ver’”. Tenho alguns planos para médio prazo, mas nada que possa dividir agora.

MC: Você gostaria de acrescentar mais algum assunto ou comentar algum ponto?

HS: Quero dedicar nominalmente essa matéria a meus mentores e muitas pessoas amadas, mas a algumas mulheres que trilharam caminhos árduos para que eu pudesse ter parte da minha trajetória registrada aqui. São elas: minhas avós, Izolina Barboza e Quintina Trindade dos Santos; minhas tias Doralice Evaristo, Dagmar Evaristo Barboza, Mary Santos e Sonia Manzotti; minha irmã, Maryevellym; a minha mãe Elza Barboza e, especialmente, Dona Ilma ou “Tia Miminha”, que me alfabetizou e segue sendo luz. Que eu seja uma parte do caminho para outras que virão.

Seguimos.

 

Horrana de Kássia Santoz é curadora de pesquisa e ação transdisciplinar Coleção Ivani e Jorge Yunes na Pinacoteca de São Paulo, responsável pela programação pública da Pinacoteca de São Paulo e do desenvolvimento de projetos transdisciplinares, como o programa de pesquisa “Atos modernos”. Graduada em Artes Visuais pela Universidade Federal do Espírito Santo (2011), atua desde 2007 no desenvolvimento de novas práticas educativas em museus e espaços culturais, como, arte-educadora, mediadora, assistente de produção e assistente de curadoria. Integrou o programa Fábricas de Cultura como assistente e supervisora artístico-pedagógica da Fábrica de Cultura Jardim São Luis. No núcleo de Mediação e Programas Públicos do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP) organizou a programação de cursos do MASP Escola, além de ser curadora da sala de vídeos do MASP, entre 2018 e 2020. Em 2022 foi júri na 11ª edição da mostra 3M de Arte; na Chamada 2022–2023 VoA para Artistas Mulheres e Pessoas Não Binárias; e no 8º Prêmio Artes Instituto Tomie Ohtake — Edição Mulheres.