Suelen Calonga. Foto: Divulgação

CONVERSA COM CURADORES: SUELEN CALONGA

por Mayara Carvalho

7 de junho de 2022

Suelen Calonga. Foto: Divulgação

Chegamos a nossa oitava entrevista da série Conversa com Curadores. Neste mês, conversamos com Suelen Calonga, que nasceu em Contagem (MG) e hoje está baseada em Berlim. Atua em diferentes áreas, como artista e pesquisadora de arte e cultura, desenvolvendo também estudos sobre o colonialismo e sua relação nos sistemas de arte e controles de narrativas. Além disso, é MFA em Arte Pública e Novas Estratégias Artísticas (Universidade Bauhaus, 2020), Bacharel em Comunicação Social (PUC Minas, 2007), especialista em Imagens e Culturas da Mídia (UFMG, 2010), e co-coordena a iniciativa WAR (Worldwide African Route). A entrevista integra a pesquisa Mapeamento de curadoras, curadores negras, negros e indígenas.

Mayara Carvalho: Como surgiu o seu desejo pela curadoria, e como você tem construído a sua trajetória no campo?

Suelen Calonga: Meu nome é Calonga, e só recentemente aprendi que esta palavra significa algo como “uma pessoa estudada”, ou intelectual, na língua tshiluba (Luba-Kasai) da África Central. Quem me ensinou isso foi o também artista Shambuyi Wetu, e essa foi uma grata surpresa que veio mais ou menos junto com outros melhores entendimentos sobre mim e meu caminho. Eu carrego em mim dois legados de produção de conhecimento: a produção intelectual e política por parte dos homens negros do lado do meu pai, e a sabedoria holística das práticas espirituais indígenas e ciganas das mulheres do lado da minha mãe.

Então, quando penso em curadoria, uma palavra de amplos significados, eu percebo que minha trajetória como curadora tem sido mais próspera nos sentidos menos usuais e mercadológicos dessa palavra. Os sentidos que constelam e persistem no verdadeiro significado africano do meu nome. Uma pesquisadora.

Dentro de seu significado mais conhecido de curadora, de pessoa responsável pela concepção, montagem e supervisão de exposições, de edição e revisão de catálogos, por exemplo, considero que foi o meu ciclo mais curto, entre 2014 e 2018, quando atuei nas equipes de programação em Artes Visuais do Sesc SP nas unidades Santana, 24 de Maio e Pompeia. Ali tive a possibilidade de adentrar e compreender profundamente as questões institucionais, administrativas e financeiras da curadoria, que envolve conciliar todos os diferentes (muitas vezes discordantes) interesses de artistas, públicos, tomadores de decisão, responsáveis pelas obras, etc, mas também de atuar de forma direta e intensa com o educativo na reverberação na comunidade das propostas narrativas de grande relevância social. Porém, esse período também me afastou da parte que eu considero a que mais me motiva na curadoria, que é a pesquisa. E acabou me afastando bastante também da minha prática artística, e em 2018 eu decidi que precisava largar o meu emprego para retomar o meu trabalho. A forma que encontrei de viabilizar foi conciliando pesquisa e poética em um mestrado em artes.

Fui aceita no programa de Arte Pública e Novas Estratégias Artísticas da Bauhaus-Universität na Alemanha, onde foquei na pesquisa como uma estratégia artística. Descobri que o conceito “Artistic Reasearch”, que é super recente, tem sido difundido como um importante validador das artes como ciências na academia. Muitos programas não-artísticos já consideram os métodos da pesquisa artística como produtores de conhecimento tanto quanto outros métodos científicos. Então, pra quem busca criar credibilidade científica/acadêmica em seu trabalho artístico, que era o que eu buscava naquele momento, é um caminho muito interessante.

Desde então, minha trajetória tem caminhado totalmente para esse lado da investigação, se afastando da curadoria entendida como seleção de artistas e obras para composição de programas, e se expandindo para o campo da transmissão de conhecimentos que compõe pensamentos complexos. Hoje, muitas vezes, isso se dá sem nenhuma obra de arte envolvida, nem mesmo minha (nesse entendimento comum do que é o objeto artístico, material ou intangível). Talvez isso fique mais nítido ao longo da entrevista.

MC: Um dos seus interesses é sobre arquivo-conhecimento-memória, você pode nos contar um pouco mais sobre essas relações e de que forma você as trabalha em seus projetos de curadoria?

SC: A minha dissertação de mestrado (“Why do the Archives archive?” [Por que os arquivos arquivam?], 2020) gerou um arco de trabalhos muito grande, com uma parte teórica focada em tentar compreender as motivações míticas do fetiche da acumulação europeu e as consequências do extrativismo colonial na construção de coleções nacionais, o que hoje se reflete em uma discussão muito profunda sobre a destituição e a restituição de bens culturais. Uma segunda parte do arco de trabalhos já apontava para o que viria a ser meu principal interesse hoje, uma ciência mais espiritual do que viria a ser conhecimento, quando meu principal método de confirmação de hipóteses que não podiam ser provadas pelos meios tradicionais acadêmicos foi o jogo de búzios. Essas duas partes conjugadas ainda geraram um artigo posterior onde eu aprofundo o conceito de “contra-etnografia” e discuto como os braços “longos” do colonialismo, notadamente as ciências (pelo lado do sistema acadêmico) e os sistemas de arte criam e destroem memórias a partir do controle de narrativas. E uma terceira parte, que foi a documentação poética dessa jornada, em que tratei da noção de caminho como arquivo e da noção de bagagem como arquivo, que gerou uma série de performances e vídeos. Meu último trabalho “I am the archive” [Eu sou o arquivo] me colocou em xeque ao demonstrar o conflito entre a minha percepção de mim mesma como um todo coeso e coerente, preenchido pelo amálgama da minha espiritualidade, e a percepção externa de mim, uma coleção de fragmentos, lacunas e rupturas identitárias que serve muito bem aos propósitos etnográficos.

Notei que a forma como a Ciência é concebida nas sociedades ocidentais (e ocidentalizadas), uma seqüência de observação, coleta, descrição, organização e acessibilidade de dados, transforma tudo em um Arquivo. Eu acabei me vendo, minha história, meu caminho, como Arquivo, também. Então, os objetos produzidos são arquivos, o corpo e a mente são arquivos, a história de uma sociedade é um arquivo, uma prática cultural é um arquivo, uma árvore ou uma pedra são arquivos…. tudo é suposto ser coletado, estudado, explicado, arquivado… Então, se tudo pode ser transformado em arquivo, o que realmente faz de um arquivo um Arquivo? Perceber a armadilha da perda da autodeterminação já no finalzinho desse processo, e já dentro daquele período de profundo isolamento e poucas esperanças dentro da pandemia, me fez ver que, mais uma vez, o poder é o que articula o trinômio arquivo-conhecimento-memória. E eu retornei para o centro da encruzilhada mais uma vez para me perguntar: o que é, então, o poder?

Passado mais de um ano, essa questão ainda me incomoda, pois percebi que não apenas a razão de existência de Museus, Arquivos e Coleções, como o próprio significado dessas palavras (e outras que elas evocam: arcabouço, coleção, inventário, registro, repositório, repertório, catálogo, acervo) dizem respeito a um conjunto de dados ou objetos descritos, acumulados, sistematizados e guardados em um lugar para serem acessados. Em algum ponto do processo de colonização passamos a compreender isso como “produção de conhecimento”, mas, na prática, isso nem faz nem sentido. O conhecimento não se inscreve em um lugar “neutro”, nem mesmo nas artes, ou nas letras, menos ainda nas ciências. Como foi que passamos a ter no arquivo a nossa principal fonte de apreensão do mundo, e não mais o próprio mundo? Onde reside a percepção hoje?

O que é isso que acontece nas memórias individuais e coletivas; isso que acontece no silêncio e no invisível entre os corpos (inclusive não-humanos), e que não pode ser mostrado, descrito, transcrito, traduzido, mas ainda assim é transmitido? O que é isso que tanto as árvores, quanto as pedras, quanto as pessoas percebem e sabem a partir do que acontece ao redor e que é possível transmitir ainda que seja impossível descrever, registrar, e, sobretudo, nomear? Certamente, não se trata de arquivo.

I am the archive, de Suelen Calonga, 2020. Foto: Maedeh Nassouri

MC: Poderia nos falar um pouco sobre a contra-etnografia, conceito que você desenvolve? E de que forma, a partir disso, poderíamos refletir sobre o controle de narrativas nos espaços curatoriais?

SC: Continuando o raciocínio da questão anterior, aquele ciclo se encerrou e se reabriu com essa noção de caminho como arquivo e a noção de bagagem como arquivo, desafiando a compreensão do Arquivo como um lugar que não é de conhecimento, mas de poder. Eu parti da liberdade auto-concedida de chamar de Arquivo qualquer lugar que se pretende ser repositório de conhecimento coletado, organizado dentro de um sistema inventado, e colocado pra ser acessível de forma controlada, então museus (de todos os tipos), galerias, arquivos propriamente, bibliotecas… todos esses locais cabem nesse meu entendimento de Arquivo, porque todos servem a um mesmo fim, com uma mesma motivação. Mas para fins de nitidez no entendimento do conceito de contra-etnografia eu foquei especialmente nos museus etnológicos porque eles são os mais flagrantes da problemática que eu quero ressaltar. Museus etnológicos são aqueles que colecionam objetos etnográficos, as provas materiais da etnografia, sejam elas fotografias, vídeos, objetos seculares e sagrados, sons, de culturas que não são as de quem a coleta, mas dos “outros”, a fim de contar a história desses “outros”.

Então partindo da encruzilhada da pergunta “O que é poder?” eu tomo o caminho de chegar à conclusão que poder não é dinheiro, não é o puro exercício da violência, nem tampouco a capacidade de barganha. Poder é o controle da narrativa. É o poder de afirmar quem você é, garantindo que os demais acreditem em sua narrativa sobre si. É o poder de afirmar quem o outro é, garantindo que esse outro acredite que ele é o que você afirmou sobre ele. E é só assim que os demais poderes se instauram, ao redor desse: Você precisa fazer com que todos acreditem (inclusive você mesmo) que você é superior aos demais para que você se torne superior. Você precisa convencer aos demais (e a si mesmo) que a sua forma de viver/fazer/conhecer é melhor para todos, não apenas para você. Você precisa acreditar que alguém é mais forte que você para que você se torne fraco. Etc. E assim se estabelece o poder, pela narrativa e a crença.

Quando eu olhei pra isso, percebi que a ferramenta mais afiada já vista para lapidar a narrativa é a etnografia, conteúdo e forma das disciplinas acadêmicas das ciências sociais. Sendo assim, Marimba Ani em seu livro “Yurugu: An African-Centered Critique of European Cultural Thought and Behavior” [Yurugu: uma crítica africano-centrada do pensamento e comportamento europeu] (1994) me ajudou a ver com nitidez que o método etnográfico é a mais pura e cristalina expressão do “asili” europeu: o desejo mais profundo, a motivação mais visceral, a lógica e a ética branca/yurugu. Por isso eles têm esse fetiche de posse e acumulação (de tudo), essa ânsia de ter que arquivar tudo (de todos).

E a partir do entendimento do que é e como a etnografia é usada como ferramenta de exercício de poder contra nós, eu proponho essa retomada da autodeterminação, de escavarmos nós mesmos e encontrarmos quem nós somos verdadeiramente, mas também sabermos quem nós não somos, através da contra-etnografia desse “outro” europeu. Pra que a gente nunca mais se confunda achando que nós somos aquilo que eles são, ou aquilo que eles dizem que nós somos.

Coloco o link do artigo, publicado em 2020 por um periódico da Universidade Federal do Maranhão, pra quem se interessar (em português).

Em relação ao papel da curadoria nesse contexto, bem: sendo o curador (institucional) a pessoa que vai articular todos os interesses envolvidos no processo de realização de um projeto (expositivo, por exemplo), eu posso dizer que ele é o porta-voz desse controle de narrativa. O papel de escolher o que entra e o que fica de fora, e, principalmente, os motivos pelos quais determinadas coisas ficam dentro e determinadas coisas ficam fora é fundamental na construção da narrativa curatorial. Esse papel não é exclusivo do curador. É muito próximo do que acontece nos canais de mídia também – o que é notícia e como é noticiado pelas editorias dos jornais, por exemplo – só para dar um exemplo. Também não quer dizer que é exclusivamente ruim, porém as instituições são criadas e mantidas com fins específicos, e é virtualmente impossível que uma narrativa seja gestada e financiada por uma instituição de forma a prejudicá-la de forma intencional. O curador estará lá, inclusive, para garantir que não haja prejuízos.

MC: Desde meados dos anos 90, uma série de eventos têm marcado o sistema das artes com debates e propostas decoloniais, revisionistas e críticas. Os artistas, curadores e teóricos não brancos têm sido os grandes contribuidores para essa mudança de paradigmas e da hegemonia branca-elitista-europeia-judaíco-cristã no poder de definição dos rumos das artes. Como você vê esse momento?

SC: Eu já ouvi de muitas pessoas que a minha opinião sobre esse tópico do “decolonial” na arte é muito radical, e eu acho que isso acontece porque como é a palavra da moda, (que, aliás, acompanha muito bem “antirracista”) muitas pessoas se sentem desconfortáveis ao serem confrontadas com o fato de que o trabalho que fazem nessa seara é utilizado pelas instituições puramente como capital social e político, não há nada de decolonial* nisso. Explico melhor mais adiante. Sempre que esse assunto surge eu fico com a sensação de as pessoas o abordam desde o ponto errado da questão, a dita produção decolonial de artistas e curadores não-brancos, quando na verdade não é esse o centro da (de)colonialidade no tópico. Muitas vezes não sei dizer se fazem isso por desconhecimento, ingenuidade ou por desonestidade intelectual.

Por mais que faça parte da poética de muitos de nós o desejo da cura do trauma, a exaltação do que se resgata ou redescobre de si (individual e coletivo), a denúncia na abordagem da violência colonial em muitas esferas… a meu ver, a questão do colonialismo não passa por aí dentro dos sistemas de arte. A arte não é colonial em sua produção, a arte tem vieses coloniais em seus usos, e quem usa a arte de forma colonial são as instituições. Esses usos são variados de acordo com a instituição, claro, mas podem ser para fins mercadológicos, como aquisição de patrimônio material (compra, venda, colecionamento), para fins de espoliação (roubo colonial de artefatos, manter fora do alcance de quem produz os sentidos simbólicos do que foi produzido), criação ou manutenção da narrativa (a instituição fortalecer uma ideia coletiva sobre o que ela é e qual a sua relevância social). E é esse terceiro ponto que responde melhor a pergunta feita: a forma com que eu vejo esse momento é a manobra narrativa das instituições que lidam com objetos de arte e cultura hoje, uma tentativa de parecerem ser algo que não são, desviando a atenção do que realmente são.

Ou seja: esses usos da arte não mudaram com o surgimento da tag “decolonial”, assim como o racismo não acabou depois que inventaram a tag “antirracista” nos sistemas das artes. Então quando vejo programas que tratam da “arte decolonial” cheio de artistas pretos e indígenas que fazem o mesmo trabalho de resgate e/ou valorização de suas práticas tradicionais que já faziam desde sempre, mas agora estão sendo capitalizados (muitas vezes cooptados) pelas instituições, eu tenho sentimentos conflitantes. Ao mesmo tempo que se abre uma janela de oportunidade para a viabilização financeira do trabalho de muitos de nós, se torna uma armadilha que expões a falta de sustentabilidade desse projeto, uma vez que preenche a agenda da Década do Afrodescendente da ONU, que guia a programação de muitas dessas instituições, e que está prestes a terminar em alguns poucos anos.

Esse meu ponto de visa reflete valores políticos e éticos não apenas dentro da minha prática artística, mas no geral da minha vida: colonialismo é um sistema de dominação geopolítica no qual uma cultura exerce autoridade e controle sobre outra(s), se utilizando de métodos coercitivos (exploração direta ou indireta do território e/ou dos corpos dos habitantes desse território, controle das narrativas sobre o explorador e o explorado, sanções comerciais/financeiras, roubo e espoliação). Os museus (e todos os outros braços que sustentam o sistema das artes, como galerias, centros culturais, etc) são um sistema dentro desse corpo colonial, então não é possível existir um sistema de artes decolonial, um museu decolonial, porque esse sistema se autodestruiria. E não é o que estamos vendo acontecer. Só pode ser considerado decolonial algo que se proponha a desmontar esse sistema. Em outras e mais diretas palavras: se estamos realmente interessados em práticas artísticas decoloniais, ao invés de disputar um espaço nas paredes coloniais a gente deveria estar conversando sobre formas de derrubar essa parede.

Os paradigmas seguem intactos, a hegemonia branca-elitista-europeia-judaico-cristã segue hegemônica e a arte (institucionalizada) segue caminhando pelo mesmo rumo. Apenas vemos novas cores nas imagens que ilustram cartazes de divulgação das exposições e nos relatórios de “impacto social” das empresas. Mas se nenhuma instituição está sendo prejudicada por esse processo ele é qualquer coisa, menos decolonial.

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* de- : prefixo que indica separação, afastamento, cessação, negação e intensidade (SANTOS, Alice Pereira. Origem e desenvolvimento dos prefixos de- e des-. Filol. Linguíst. Port., São Paulo, v. 22, n. Esp., p. 167-187, 2020. https://www.revistas.usp.br/flp/article/view/165701/167247)

MC: Um aspecto presente na carreira de muitos curadores negros e negras é o desenvolvimento de uma atuação múltipla, ou seja, atuando como curador, artista, pesquisador, educador, entre outras áreas. Como você vê isso? De que forma essa multiplicidade também aparece em sua atuação? E como é trabalhar com arte e curadoria fora do Brasil?

SC: Eu acredito que essa é uma constante na vida de grande parte das pessoas negras, em qualquer parte do mundo, mas especialmente na diáspora. É muito pouco provável que tenhamos uma situação tranquila de vida familiar, financeira e emocional a ponto de podermos nos dedicar a apenas uma atividade profissional. Sendo essa atividade no campo do fazer artístico-cultural é ainda mais difícil, pois é uma área que exige grandes esforços de aprimoramento técnico e social para a profissionalização. Do acesso a materiais e espaço de trabalho, passando por cursos de idiomas, ferramentas de administração, planejamento e promoção da carreira, até o conhecimento, acesso e circulação nos espaços de arte com a roupa, o cabelo e o discurso certo (para as pessoas certas), enfim. Esses esforços não acompanham uma compensação material equivalente para sustentar todo o restante da vida (moradia, alimentação, lazer…). Uma exigência de dedicação que não parece compatível com o que Wagner Leite Viana chama acertadamente de “uma existência intranquila”. Então a atuação múltipla me parece uma estratégia de viabilidade: um contrato como educador temporário pode ser a entrada de dinheiro necessária para financiar a produção de um próximo trabalho, por exemplo. Principalmente no cenário brasileiro, carente de programas de financiamento e custeio.

No meu caso, tento contornar a questão me dividindo entre o meu trabalho e o meu emprego. Desde quando comecei a minha produção mais sistematizada em artes, em 2011, procurei nunca estar desempregada, ainda que em atividades não relacionadas às artes. A energia que eu economizo por evitar o stress de não saber como viverei o próximo mês eu consigo gastar com melhores trabalhos. Minha produção se torna mais lenta, seja como artista, curadora, pesquisadora, mas ganho a tranquilidade de me preocupar mais em formar um legado intelectual coerente ao longo da minha vida que encher o currículo de linhas de uma carreira que se não tem como se sustentar.

Eu fico muito feliz quando tenho a oportunidade de cruzar as múltiplas possibilidades de atuação em um único ponto de interesse. Foi o caso do ano passado, quando o Instituto Arte na Escola me convidou para redigir o material educativo e de formação de educadores para o Prêmio Arte na Escola Cidadã, a partir da obra Parede da Memória, de Rosana Paulino. Foi uma experiência incrível, pois ao longo de 8 meses eu pude convergir muitos assuntos, pesquisas e formatos de trabalho que vinham acontecendo simultaneamente para formarem um só resultado. Por isso eu também considero que esse foi um trabalho de processo poético, uma obra realizada em texto, já que nele estão registrados os muitos caminhos paralelos que percorri para a realização dessa pesquisa.

Aqui na Alemanha eu participei de algumas exposições e residências, fiz alguns projetos artísticos que resultaram em performances, mas ainda não considero que meu trabalho acontece no exterior, pois ainda é muito voltado para o público e as questões locais da realidade do Brasil, ou pelo menos vinha sendo até bem recentemente. Só nesse último ano que eu realmente dei início a uma internacionalização da minha atuação, pois me mudei para Berlin e encontrei aqui tantas pessoas africanas vindas diretamente do continente ou de outras diásporas, que isso me despertou o desejo de trabalhar mais nessa rede intangível de transmissão de conhecimento que eu vinha falando anteriormente, e é o que eu tenho me dedicado agora.

São dois os ganhos principais que eu vejo ao se trabalhar com arte e cultura no exterior: 1) a possibilidade de se inserir em ambientes verdadeiramente multiculturais, o que não acontece no Brasil (um país bastante fechado, na verdade). Pessoas internacionais que chegam até nós, no contexto brasileiro, geralmente estão interessadas no Brasil, falando português, e por isso vão pra lá, o que reforça o fechamento cultural. Sair desse contexto é uma expansão gigante na multiplicidade de contextos, histórias, motivações e oportunidades. 2) usufruir da infraestrutura de bem-estar social que faz com que o governo se ocupe da garantia da qualidade mínima de vida e as pessoas podem se concentrar melhor em produzir o que quer que produzam, sem tanto medo do futuro imediato. No meu caso pessoal, foi também um alívio da pressão individual sobre o corpo negro, a necessidade de criar diariamente estratégias de resistência, enquanto aqui no exterior eu consigo ver com mais clareza a estrutura geopolítica que sustenta o colonialismo e racismo no mundo. Me sobra mais espaço mental para pensar e articular com meus irmãos, sem a necessidade urgente da sobrevivência.

MC: Você poderia comentar um pouco sobre os seus projetos futuros?

SC: Meu trabalho, quer seja entendido como artístico ou curatorial, tem caminhado para esse sentido de não ter muito mais o que mostrar. Alguma coisa do meu processo ainda rende uma imagem, um vídeo, um texto, mas ele está existindo mais num campo energético, no espaço da troca com o outro (e esse outro pode ser muitas coisas, inclusive não-humano). Às vezes gosto de falar que não trabalho mais com arte visual, eu faço ebó, faço macumba, faço trabalho espiritual. Na verdade, a arte sempre foi e sempre vai ser, no meu modo de ver, um canal de conexão da gente com o que existe de divino, mas também sei que esse entendimento não é compartilhado com todos; muita gente trabalha com processos racionais em seus processos poéticos. Eu falo com e através da minha espiritualidade pela arte e tenho envolvido outras pessoas nesse processo, em forma de rede. Eu tenho centrado todo o meu processo curatorial-artístico-investigatório em uma ciência espiritual.

Tenho pensado muito no que a gente realmente quer dizer com produção quando usamos a expressão “produção de conhecimento”, porque eu sinto que esta noção é, novamente, mais sobre poder do que sobre aprendizagem ou compartilhamento, e é aí que eu, mais uma vez, retorno praquela velha encruzilhada.

Desde o meio da pandemia pra cá, eu tenho organizado junto com meu parceiro Kamai Freire uma plataforma disforme de aprimoramento das nossas pesquisas artísticas (ele se dedica a música e musicologia). Criamos a Obará, que é um dos nós da teia-plataforma que concebemos chamada WAR, Worldwide African Route [Rota Africana Internacional] que não acontece em nenhum lugar e ao mesmo tempo em vários lugares. Obará tem atualmente uma página no instagram e um canal do youtube, mas não é isso que Obará é; ainda estamos estudando como (e se é possível) utilizar essas mídias pra escoar o que temos produzido… porque são formatos engessados e que exigem um tipo específico de produto final. O que temos feito a partir de Obará é séries de conversas livres com pessoas africanas que conhecemos aqui, de diferentes países continentais e diaspóricos, também interessadas na emancipação intelectual e espiritual de África. O trabalho acontece, realmente, no encontro, na livre troca de ideias, na transferência do conhecimento um-a-um, que não acontece no ensino-aprendizagem, mas no mistério entre os corpos, nas faíscas das conversas, no verdadeiro sentido da tradição oral. Como arte, talvez possa ser entendida como relacional, mas ainda não tenho certeza… Algumas conversas a gente ligou uma câmera e registrou, mas ainda não sabemos muito bem o que fazer com isso pra não achatar o significado dessas trocas em uma simples série de vídeos que vai engrossar a enxurrada de material do tipo na internet… seguimos pensando em formas viáveis de transferir conhecimento em escalas maiores.

 

Quero experimentar com formas de saber. Estou mais ainda interessada nos processos de observação (vidência, leitura de sinais da natureza, percepção de mensagens), questionamento (práticas oraculares antigas e sistemas de adivinhação) e sonhos. Isso tudo são formas de saber que são negligenciadas, mas que grande parte do que sabemos do mundo é aprendido dessa forma, e não por livros ou consultando acervos. Pra 2022 eu vejo meu trabalho caminhar mais nesse sentido da transferência de conhecimento (ao invés de produção, principalmente acadêmica), que é o que eu sinto que acontece nas conversas, nas trocas, na famosa e pouco compreendida tradição oral. Tem um poder na fala e na escuta, na troca direta entre duas ou poucas pessoas que não acontece de outra forma, porque não é possível organizar, armazenar, sistematizar esse saber para torná-lo acessível de outra forma. Isso tem me fascinado.

 

Suelen Calonga carrega o legado familiar da produção intelectual e política dos homens negros e o conhecimento holístico das práticas espirituais das mulheres indígenas e ciganas de sua família. Nascida em Contagem/MG, está baseada na Alemanha desde 2018, onde mora e trabalha desde Berlim. Artista e pesquisadora em arte e cultura, Suelen é MFA em Arte Pública e Novas Estratégias Artísticas (Universidade Bauhaus, 2020); Bacharel em Comunicação Social (PUC Minas, 2007), e especialista em Imagens e Culturas da Mídia (UFMG, 2010). Gestora da plataforma Obará, onde atua em duo com o artista e pesquisador Kamai Freire no campo da pesquisa artística e da transferência de conhecimento. Co-coordena a iniciativa WAR (Worldwide African Route), criando, documentando e compartilhando processos investigativos de pessoas pretas que trabalham pela emancipação intelectual e espiritual de África e seus filhos continentais e diaspóricos pelo mundo.